19.2.12

Ah marzinho

Eu não esqueço a primeira vez que Letícia viu o mar. Tinha 12 anos. Caiu ajoelhada no chão e afundou as mãos na areia. Como quem perdeu o parâmetro da vida. Como quem não entende mais nada de coisa nenhuma. Abria e fechava a boca. “Aquilo é o mar?”, “É”, “Nossa!”. Nossa,

eu pus as mãos nos ombros dela. Peguei uma mão, depois a outra e depois peguei os olhos dela, por fim os ouvidos: “Vamos no mar”, “Não, do mar só quero um espio”. Mas eu, criatura imune, empurrei seus passos para as ondas. Empurrei boca, joelho, cabelo, língua. “A água tem sal!” e “O mar se mexe comigo sozinho”.

Que tipo de bicho humano era aquele? Um ser sem ah mar. Sem rio. Sem ter tido nada nunca liquefeito. Chorar não podia. Cuspir tampouco. E se sorria era com uns dentes sem saliva. E se suava, já era evaporando.

Porque quem não viu mar, não conhece oceano e quem nunca oceanografou-se não faz ideia do infinito que cabe em um lugar. E também quem nunca rio, nunca navegou. E nunca teve beiras e nem cascatas e nem carruagem.

Letícia era gente de terra (a)batida. Daquelas que a esperança vira pó ou vira lama. Letícia tinha olho amarelo, não comia miolo de pão e tinha chinelo maior que o pé. Que é para poupar. Que é para crescer e ainda ter lugar. Pessoa de futuro feito. De morte certa. De dor agendada.

E tudo isso por não ver o mar. E tudo isso sem navegar seu corpo. Sem onda nem frequência.

Foi então que eu revi o mar e era vermelho. E tinha olhos mutantes. E navegava com os pés na terra. E navegava mesmo com todas as âncoras do mundo. Não sei como, não sei, não imagino como se faz para cantar em silêncio. Mas aquele mar sabia. E cantarolava, sem titubear nem um tantinho, me enrolava em flores.

E quando eu vi esse mar gigante se desenrolando para dentro de mim, entendi Letícia. Lembrei dela e me compadeci de mim mesma. Fiquei triste da vida ser tão pequena e meu coração ser tão miúdo para caber tamanha felicidade. E agarrei a areia, fiquei desfazendo as pedrinhas com os dedos. Como Letícia. Sem acreditar naquele mar dentro dos meus olhos. Aquela azulidão. Aquele mundaréu de beleza encarnado.

Fiquei imaginando como se vive depois disso. Olhava para meus pés sem ver os dedos, para o meu rosto sem ver os olhos. O mar se mudou para dentro e sou toda correnteza. Sou toda nada mais. Nada mais me resta para lembrar, agora sinto nos lábios um gosto novo de vivitude.

Ah mar rio. Aguardente. Letícia viu o mar e eu carrego oceanos dentro de mim. Que bom. Que bem. Bombembom.