4.9.15

Da realidade dos fatos

            Certa vez, uma amigo do meu irmão apareceu aqui em casa, tarde da noite para ir no Via Show, a namorada dele, que morava na Serra ou na Região dos Lagos ou longe tipo São Gonçalo, estava na casa dele. Tinha vindo passar o fim de semana com seu amado. Diante da alegação de que iria jogar video game o jovem, ganhou o mundo, com perfume e gel emprestados. O que me inquietava era que ele havia me dito que desta vez estava realmente apaixonado (fato inédito). Resolvi inquiri-lo: “. Mas, garoto, você não disse que gostava dessa menina?!”. Ao que ele pensou, pensou e me respondeu: “E eu gosto! Só que gosto mais de mim!”. Gargalhei.

            Achei esse argumento de uma honestidade ímpar, tanto para ele mesmo quanto para o interlocutor, no caso eu. Não tanto para a donzela, mas, vá lá, nem toda estória tem final feliz para todos. Aliás, quase nunca tem. A questão é que normalmente escondemos nossos interesses reais e colocamos a culpa no outro pelas nossas escolhas. Nesse caso, a fulana era ótima, gostava sim, mas não queria abrir mão das demandas do ego dele. De qualquer maneira, a resposta foi genial, uma baita auto-sacação.   

            Não tenho a mínima pretensão de explanar uma conduta moral a ser seguida, não sendo comigo, cada qual é livre pra trair quem bem entender. O ponto neuvral seria muito mais a capacidade de auto-compreensão dos indivíduos moderninhos - que está bem afasada. Para além de sermos miméticos, temos que 1) imitar, 2) explanar e 3) colher as curtições. Isso dá um trabalho enorme e arquitetar uma felicidade (nem que seja falsa) nunca foi tão difícil, afinal, temos fiscais. Fiscais do peso, da carreira, do amor, fiscais de mêmes. E quem me dera fosse só o Tio Sam vigiando, pelo menos era da família. Um tera de pessoas inspecionando umas às outras, sem que tenham, ao menos, uma relação próxima. Eu também fofoco virtualmente, não sou santa, nem boba - minha valia é que não sou tão curiosa, então levo bem minha ignorância.

            Lembrei também de uma explicadora que eu tive, que era alto nível. Ela era esperta, versátil e fez uma mini-escolinha no quintal de casa. Alunos de várias séries. Meu sonho era passar no colégio militar, mas não tinha dinheiro para pagar o Curso Martins, então, fiquei aqui no bairro mesmo, por sessenta reais. Passei para FAETEC e fiz diversas coisas em visual basic. Tenho o meu glamour, dá licença.

            Ela trabalhava sem parar. Na minha formatura de oitava série ela foi e eu fiquei estourando de orgulho. Ganhei uma medalha de melhores notas, achei tudo o máximo. Sobretudo vê-la de cabelo penteado, com roupa de sair. Isso tomou uma dimensão tão grande dentro de mim que não lembro se meus pais foram. Ela era minha mestre, que sabia todas as matérias e me explicava tudo o que não conseguia entender. E há até poucos meses eu tinha todo o material que ela havia confeccionado para mim naquele ano. Guardei alguns favoritos e o resto deixei ir.

 Ao contrário do rapaz do começo do texto, a Tamar colocava todo mundo a sua frente. Os pais, os sobrinhos, irmãos. Ela cuidava de tudo, até da limpeza do coco dos cachorros. Morreu uns dois anos depois da minha oitava série, um negócio assim. Teve um infarto e pronto. Fechem os livros, esvaziem as cadeiras. A filhinha dela era mais nova, devia ter uns 10 anos. Não deve ter passado no colégio militar também, ficou órfã (o pai era distante ou não existia).

            Toda vez que passo em alguma prova, uma coisa bem difícil, eu lembro dela, nunca ninguém confiou tanto na minha inteligência. Eu chegava com um problema de matemática sem solução, muito angustiada, ela olhava e me dava uma bronca: “Não quero ouvir eu não sei. Você não fez porque você não quer. Quando quer, resolve.” E eu resolvia. Ela me ensinou a ser persistente, como não conseguia confiar em mim mesma, confiava na palavra dela.

Nos últimos dias, fiquei imaginando batendo na porta dela e contando que passei no vestibular, que passei na prova pra tirar habilitação (que sufoco!), passei na prova do mestrado, na prova do emprego que eu queria. Queria contar que já corri 10km, que já subi montanha. Iria ser bacana ouvir aquela risada, como se eu estivesse fazendo uma estripulia: “você é fogo na roupa!”.

18.8.15

Museu, Musoele

Há algum tempo sinto vontade de escrever qualquer coisa que não está cabendo no vernáculo. Fico agoniada com essa sensação na língua que não consegue virar um sabor, um nome. As palavras sempre me acalentaram e me ajudaram a suportar tanto a tristeza como a alegria.

Mas há dois dias ganhei flores e agora, toda vez que durmo, sonho com elas. Até no cochilo do trem, sonhei. Achei tão bonitas, ganhei dois ramos: ambos roubados do meio da rua numa madrugada. Uma era um Flamboyant, a outra uma orquídea branca. Uma na ida, outra na volta. O que mais me impressionou foi o fato de alguém reconhecer beleza e lhe endereçar, rotineiramente. É comum que eu ande por aí e colha algumas, seguro até se desmancharem nas minhas mãos. Vivo com os bolsos cheios de flores. Aliás, vivia. Por algum motivo, parei de pega-las e passei a apenas contemplar.  Agora me dou contas. Vejo, que, em alguma medida, isso foi um procedimento amplamente adotado por mim. Parei de tocar, usar, consumir. Passei a desejar, me controlar e observar.

De repente, ele passa, arranca e me dá. Nesse momento, percebi duas coisas: eu quero isso e mais, quero receber. Desejo me doar, sem ter nada em troca. E desejo receber, sem nada em troca. Também. Exatamente como aquelas flores, que não podem ser replantadas, possuem sua plenitude no que aparentemente seria uma limitação.

Acredito que o amor, vivenciado em nossas mais diversas relações, vez por outra toma um sopapos e só o tempo pode demonstrar a sua força e resistência. Numa terra aparentemente vazia, nasce uma folhinha: uma semente que brote, basta. A vida pulsa numa voracidade que é difícil reter suas ondas, a gente cai no meio de um redemoinho e entra felicidade pelo nariz, o pé bate na nuca, a boca não dá conta de falar, nem os olhos de ver.

Era como se eu estivesse brincando de estátua, entre os meus queridos. Podia rir, falar entre os dentes, mas não podia me desdobrar e alcançar quem me investigava. O encarregado fazia de tudo para que eu me desmanchasse, mas eu me mantinha imóvel para ganhar. Às vezes, perder é a chave do sucesso, desmontar é o ápice da construção.

O amor se desenvolve como uma nuvem, embalada pelo vento, dormindo e acordando no céu. Eu estiquei minha mão, ele beijou. Tão bom. Quem me dera poder explicar.

13.6.15

Esconde-esconde


A vida é um troço esquisito. É uma espécie de elástico que a gente puxa, puxa, um estilingue que a gente estica com medo de soltar da mão e bater bem no meio da nossa cara. Geralmente sou de desejos bem delimitados: olho bem meu alvo e persisto nos arremessos. Até acertar e alcançar minha satisfação. Mas, nos últimos tempos, estava esticando o elástico só mesmo para não perder a prática. Ia para o meio do meu nada e atirava, pensamentos voando, tiritando: o que querer, pra quê querer. Uma fase boa, embora dolorida, comecei a mirar o intangível, acertar o sol, atingir o horizonte.

E nesse ritmo, de movimentos aparentemente inúteis, aprendi que existe graça no simples ato de tentar. Encontrei um rapazinho com uma barba gigantesca e uns olhinhos brilhantes que não se importava com meu despropósito, nem com minhas dúvidas. Pouco a pouco, aquelas elucubrações solitárias começaram a ser partilhadas. Ele me lembrou que isso que eu vivia se chamava sonhar. E que sonhar era bom. Sem eu perceber, ele foi colocando umas pedrinhas no meu estilingue.

Ontem, para meu completo pavor, ele puxou e puxou e riu e puxou. E me deu. Quando soltei, leviana e para o alto, recebi uma chuva de flores. O arranjo mais bonito estava lá. Com tudo o que era mais precioso. Fiquei tonta de alegria. Minhas angústias se perderam de mim. Boas memórias e gargalhadas. Parecia infinito. Eu já não sabia que bem me arremeteria, que carinho me ampararia primeiro. Fiquei toda feita de nuvem. Paralisada ante minha incapacidade de transmitir a força das minhas emoções.

De noite, pensando com Deus, concluí que ninguém nunca entenderia. Só Ele mesmo para sentir no meu coração: achei uma conchinha e dela consigo ouvir o mar. Mar me quer, velejo: proamar.

27.5.15

Como saber se eu sou um babaca? Etapa I

Minha mãe tem um olhar que eu queria ter: como ela é estrábica, cada olho vai para um canto, dando uma sensação um tanto marciana: a visão de dois mundos ou sei lá. A verdade é que ela é vesga e a cirurgia de correção não foi tão vantajosa assim.

Enfim, queria ter um olhar de marciano igual ao dela, sobretudo quando ela faz cara de “vou pensar sobre o assunto” e um olho vai lá pra cima e o outro fica pro lado, como quem mente. Será que ela mente ou será que ela pensa? Ou será que ela pensa para mentir? Mãe safada, olho X9.

No momento, independente da origem alienígena da Mama, gostaria de expor algumas poucas considerações, que julgo serem vitais para sua vida.

Penso ser certo, justo, correto e ajustável que seu número da sorte seja 4. Agora, se você for um babaca (“ai, como vou saber que sou babaca?”), se você for babacão seu número da sorte é I. Isso mesmo, número imaginário (“imagina aeeeee”). Metaforicamente quero insinuar que você não é digno de número da sorte.

Enquete: Seria eu um babaquis?

Nossa, ui ui ui, tá preocupadis? Bem, vamos ao hall exemplificativo, que obviamente não esgota as possibilidades.

11      Se você é ex-namorado(a) da(o)s minha(o)s amig(oa)s: você é babaca.
22     Se você já disse “amor, você está engordando”, take it easy, take it slow. B a b..
33   Se você, mulher, independente, orgânica e bem sucedida, não deixa seu(uá) parceiro (a) respirar. Chato. Chata. Chatão.
44      Se você tomar Yakuti dos outros, assim...babaca.
55     Se você é Juiz e não atende os adevogados e acha as partes leigas. Leigos. Leigas. Sr. Excelentíssimo meritíssimo, o Sr. é babababababaca.
66      Anarquiaaaaa: babaca.
77      Se vc cruza com uma mulher de tpm: b_ b_ c_. Non importe quoi. C’est la vie.
Chega.


Chega. Eu sou uma ser(á?) humana de sabedoria inesgotável, mas tudo tem que ter um limite. Chega de dicas-toques-e-cuticutiestorias, você vá se distrair com outra coisa. Esse texto acabou e volte lá para seu facebook.

13.5.15

Soprimentos

Se eu fechar meus olhos agora, chego num Canyon, daqueles que eu nunca fui. Eu tenho aquelas botas que nunca comprei, mas a boca que beijo é a sua – que já tive, tenho e quero sempre mais.

Seu cabelo vai ter crescido e você terá um dente prateado, só pra fazer graça quando ri. Seu nome até lá terá mudado para Billy Joe e você usará uma pulseira de couro de urso e um cordão de dente de unicórnio. Até lá a outra tatuagem já terá vindo, depois da viagem para Índia. Nesse tempo, nos tornamos macrobióticos e só comemos coisas enormes.

A vida vai passar devagarzinho, com a leveza de um trem de interior. Teremos dias de mato e de muitas flores. Teremos uma horta num barco e comeremos baleias assassinas. Ninguém vai mais fazer imposto de renda e não teremos tempo sobrando para a aposentadoria.

Nunca mais assinaremos nada e mais de três papéis não poderão ser reunidos na mesma mão. Todos os setores administrativos do mundo acabarão. Os de execução vão andar por eles mesmos, cada qual com seu cada um.

Se eu fechar meus olhos agora, estamos numa montanha e eu tenho um gorro colorido. Seus olhos continuam brilhando, seu nariz escorre por causa da temperatura gelada. Seus lábios estão rachados e esbranquiçados. Estamos em silêncio e profundamente felizes. Há tempos não víamos neve. Celebramos com um vinho que você escondeu por todo o percurso.

Num piscar de olhos estamos numa cidade. Mil cores cintilantes, é noite e você quer perambular. É dia e a rotina nos prende. Madrugada e eu invento uma profecia. Levantamos a âncora e o vento nos faz dar voltas.

Aprendo a fazer pizza sem glúten, faço macarrão de abobrinha e cachorro quente de unha e intestino de frango. É possível que meus peitos caiam, mas meus olhos estarão notadamente melhores – caberá muito mais mundo. Vou saber tocar gaita ou flauta, cortarei meu próprio cabelo e farei depilações temáticas. Vai ser tudo muito bom.

Amanhã, especificamente, vou a Olaria. Ora, toda travessia começa em algum lugar, não é mesmo?


Par se ir ência.

7.5.15

Réussir

Tendemos a pensar que a vitória é feita de saltos e atitudes bombásticas, mas eu afirmaria justamente o contrário. Há sempre o espaço inevitável do tédio, da frustração e do esforço contínuo.

Tem uma frase na bíblia que fala assim: “se te mostras fraco no dia da angústia, quão pequena é tua força”. Sempre intuí que o sucesso advém, não de pernas firmes que sustentam, inabaláveis, por todo o tempo; em sim, de pernas bamboleantes que suportam o que for necessário. I mean: é aos trancos e barrancos mesmo. E se você conhece alguém que venceu sem desmanchar o topete, bem, azar o dele.

Mais difícil do que sonhar, é perseverar no sonho. Quando tudo começa a dar errado, atacamos logo as premissas: “não deveria estar fazendo isso”, “preciso parar de querer”. Sai dessa lama, jacaré. E larga de ser chato também, porque ficar andando por aí, com a cabeça baixa e chutando pedrinhas é uma super bad vibe. E nós fomos feitos para altas ondas.

Eu nunca ganhei um bilhão de reais, nunca venci uma luta contra o câncer ou encontrei o amor da minha vida em 10 passos. Mas me considero uma pessoa bem sucedida. Eu era um feto, sem cabelo, não sabia falar, cagava nas calças e hoje uso computador e falo mais de três idiomas. Se olharmos em perspectiva, é coisa à beça - sem querer diminuir ninguém, mas acho isso mais importante do que riqueza, poder e sexo (muito sexo).

O ponto central é que a expectativa é como aquelas gelecas coloridas que vinham num potinho. Era ótimo de apertar, mas se caísse no chão ou grudasse no cabelo, era um Deus nos acuda. Não deixe suas expectativas sobre a felicidade serem tão difíceis de administrar na vida real.

Sempre que eu fico muito triste, porque falhei ou simplesmente não consegui alcançar o que almejava, lembro que o tempo de ser alegre e satisfeito é agora. Condicionar sua realização pessoal é uma armadilha escabrosa. Teve uma época em que meu cabelo caiu, eu estava tão estressada e agoniada que comecei a ficar careca. Fiquei parecendo aqueles índios com tudo raspado perto das orelhas e as madeixas longas caindo por cima. Eu estava preocupada com dinheiro, em conseguir um estágio. Fiquei careca de bobs, porque tudo deu certo.

O que mais nos atrapalha a avançar é o medo incontrolado de não conseguir avançar. Deixamos a insegurança ficar mordiscando nossos calcanhares e atrasamos nossas passadas. Há gente muito bacana que sofre mais do que personagem de drama francês. Traições, leptospirose, toda sorte de desgraças. Por quê? Por que, porque coisa nenhuma. Eu não sei, você não sabe. Se foi Deus, o diabo ou todos os Santos. A questão é: não importa.


Você é forte. Viver é bom. E vencer é prosseguir.

18.3.15

N’est pas l’amour, mais c’est pareil.

Não se sabe muito bem a classificação, mas é um sentimento morno e confortável, no qual cochilamos. Não chega a ser amor filhote, é outra coisa gostosa também, só que com outra textura. É como se estender no sol na calçada do vizinho, fechar os olhos e sentir o cachorro lambendo seus pés. Uma preguiça de ser energicamente feliz, um deixar-se em paz.

Estou enjoada de paixões: um tumulto, uma histeria, despencamento que é trop pour moi. Todo mundo se ama pra sempre e depois não manda nem cartão de Natal. Porém. Estou enjoada do marasmo, comer chocolate, sushi, sashimi, enfrentar a tpm sem dormir esgueirada no sovaco de um fofolete cuticuti.

Dilema, percebe? Dilemasso!

Bem, como estou proibida de fazer projeções, não posso esclarecer como será o futuro. Mas, imaginar não é projetar, no que adianto o seguinte: pretendo me entregar a um sentimento novo chamado sambarelove. É parecido com o amor, mas ninguém ama ninguém. Também não é aquele desprendimento de carpe diem. Sambarelove é deixar-se sentir uma coisa boa e vem do latim tchururum estilum que significa “se está maneiro, tá legal”. No sambarelove os estresses são moderados ou baixos e o porvir não é muito bem definido - mas vai ser bom.

Importante não confundir com o sentimento passandonacara ou pegaçãodxsnovinhxs. Esse aí é um sentimento válido, mas que não faz carinho na alma. Sambarelove toca o seu coração. Você olha pra pessoa e gosta muito. E quer ficar perto, quer ver mais. Mas não quer chamar de amor e contar prazamigas e pensar nos filhos e se preparar pro divórcio e voltar pra academia e dizer que tudo passa.

Sem roteiro ou desfecho, uma florzinha colorida que a gente traz no peito.
Não vem no manual, mas a gente aprende a manejar. N'est pas, mais c'est. Não é amor, mas nos assemelha.

O que a Morte não toca

Recentemente tive uma experiência transcendental que me aproximou, e muito, da temática mortífera. Por um motivo ou por outro, tive um piripaque logo depois de preparar espinafre com ovos. Senti uma leseira, um bambolejar dos joelhos e pronto. Depois disso foi só acodimento: minha mãe olhou para minha cara e viu São Pedro segurando minha mão. Toma sal, olha o remédio; minha avó, trêmula pegou o sagrado aparelho de pressão. Da minha parte tive várias sensações únicas. A primeira foi a expansão de pensamentos. Pensei que minha alma tinha saído do corpo, mas depois percebi que meus movimentos estavam devagar e meus pensamentos, apressados fluiam: pega o copo, o copo, vai cair! O copo, casseta! Já que a mão não ia, o pensamento flutuava até o copo. Você vai se estabacar, segura na pia, se joga na pia, chama alguém! E como eu permanecia imóvel, os comandos se espalhavam como ondas, tocando os objetos, como quem mostra a direção.

Quando minha mãe me olhou, viu isso tudo. O que ela não sabia era que meus lábios estavam duros feito durepox e formigando feito cotovelo que bate na quina. Ganhei sal, proferi uma cura rápida e fui tomar banho. E sem muito ensaio, estava sentada no chão do box, xampu escorrendo, a água quente amolengando ainda mais a minha carne. Meio desconfiados, os familiares evocaram meu nome e meia dúzia de respostas desconexas fizeram uma abordagem direta necessária. Desliga chuveiro, coloca roupa, só mulheres no recinto. Eu, que era dona de mim, protestei com todas minhas forças, uma vez que não havia ainda passado o condicionador, o que deixa meu cabelo espigado. Não me deram ouvido e saí sem classe, com pijama de bolinhas e cabelo ressecado.

Minha vovó, D. Edilsa, loirinha e pequenininha com unhas rosas, ficava saltitando de uma perna para a outra sem saber o que fazer. Meu pai achou que era movimentação normal da casa e decidiu se focar na digitalização de documentos. Ora ora, já que minha mãe resolveu fazer qualquer coisa lá pro lado da cozinha, a sogra (minha avó), ressentida como só as sogras podem se sentir, resolveu que iria solucionar ela mesmo o problema. Desempacotou o aparelho de pressão enrolou no meu braço e, paralelamente, percebeu que havia uma peça a mais. Gritou: Ai, minha nossa Senhora. Abriu as pernas do auscultador e colocou uma em cada têmpora. Vó, isso é pra ouvir, risonha coloquei nas orelhas dela. Garota, isso vai explodir meus ouvidos e você vai ver uma coisa. Parei de achar graça quando ela começou a apertar a bombinha e esmagar meu braço, a mão ficando branca. Ela sentenciou: Tá piorando, a mão e a boca sem sangue, hein. Nisso vem minha mãe, com um ar profissional e competente, me dá uns remédios e explica: muito baixa a pressão!

Minha avó suspirou aliviada, se benzeu, pressão alta é um perigo, fui parar no UPA! E nada no mundo fazia ela entender que muito baixa era ruim também. Que benção, minha filha, pressão baixinha! Nessa hora minhas pernas estavam para cima o que ela achou pura bobagem, minha melhora era garantida. Minha mãe explicou o que acontece quando a mínima e a máxima se encontravam e disse que eu cheguei a 9,5 x 7,5. Dona Edilsa olhou para a nora com profunda mágoa, por não ter sido mais clara antes e resolveu que os paparicos precisavam continuar: fingiu que catava piolho, apertou todos os dedos dos meus pés, contou as minhas três estórias favoritas da infância dela e por fim me deu 50 reais.


Depois disso melhorei. Meu coração disparou vendo Cidade Alerta com a minha avó e fiquei tão nervosa que pedi o aparelho dela de pressão. Mas me convenci absolutamente de que eram gases e fiz tanta força, tanta força que por fim peidei e dei o caso por resolvido. Minha avó deu aquele olhar sapeca e me chamou do velho apelidinho caseiro: peidona, minha peidona. E por um instante mágico ela me fez entender que a maioria das coisas da vida (e da morte!) se resolve com uma boa e conhecida flatulência.

12.3.15

Já-amais


Há horas na vida em que os sinos tombam e o tempo esquece de ser marcado. Os dias se tornam uma continuidade fluida de acontecimentos assimétricos. O passado e o futuro ficam constantemente se beijando, deixando o presente de lado – entediado e bocejante.

Muitas memórias nos acordam, roçam nas nossas bochechas e nos dizem bom dia. Entre um cochilo e outro, sonhamos com o porvir. Sem maturar o desejo: se as expectativas devem ser empunhadas ou rechaçadas. Nesse terreno lodoso, patinamos por paisagens espetaculares. Amores antigos. Risadas macias. Olhinhos brilhantes. Dá saudade daqueles que morreram na nossa vida. Pessoas que se distanciaram e nunca mais voltarão.

Dentre todas as palavras que aprendi, uma se ampliou dentro de mim. Desilusão. Não falo como quem parte de uma orla de tristeza, mas como um cachimbo na boca de um velho sem dentes. Como quem observa a vida, sem o interesse de mastigar coisa alguma.

Eu encarava promessas com a tranquilidade de quem recebe um título de crédito. A palavra como sendo um legítimo penhor. Ah, miragens. Mentiras e desculpas empilhadas sobre a minha cabeça. De onde tiramos tanta inocência? Com que forças voltamos a recreditar no amor over and over again?

Olhando ao redor, vejo tanta coreficina. Gente que acreditou no amor e quando abriu os braços, recebeu uma pá na cara. Sem elegância, sem charme. Acabou ficando estirado no chão, com um nariz que saia meleca e sangue, olhos de muito mimimi e lágrimas. Quando é comigo, penso que a cena não é tão feia, mas olhando o desastre dos outros, percebo que se desiludir é uma espécie de estrangulamento da esperança. Um lance pesado e quase insuportável.


Mas, voltando ao meu cachimbo e minha barba por fazer, vejo que de alguma maneira a pessoa se recria. Deixa aquela carcaça alvejada no chão e parte para outra existência. Às vezes se reinventa, às vezes se repete. Eu fico pensando que isso é um milagre deslumbrante. A capacidade do ser humano de se reerguer apesar dos pesos dos pesares. Riscam a cartilha inteira, arrepiam as certezas, peidam na nossa farofa emocional, mas aí arrumamos outros papeis, reorganizamos as verdades e a farofa que se dane. Bem, jáamais e amareis de novo.

21.2.15

Reco.meço

Estava usando o Chrome, no que ele me sugeriu um novo separador. Gosto mais quando a solução é uma nova janela. Mas, seja como for, quando se abre, já tem um longo histórico e um cursor no campo do google perguntando "o que você quer?". Quando não sabemos muito bem, acabamos por repetir o que já havíamos feito, por uma simples sugestão que brilha em nossas telas.

Imagino que muitas pessoas já passaram por crises tão profundas que tiveram que se repatriar em um outro reino de si mesmas. A pena é quando esses momentos fornecem apenas casulos, onde se fecham momentaneamente, sem a benesse de sair de lá transformado. Conheço gente assim: que rompeu com Deus e o mundo, vomitou mágoas e frustrações, apontou dedos acusadores em todas as direções, sem perceber que o rastro de lama sempre esteve em seus próprios pés. Já levei muito chute na canela e pensei até que merecia, diante de argumentos tão fortes. Qual foi minha surpresa quando vi o mesmo padrão de comportamento se repetindo, mesmo sem os personagens outrora incriminados.

A culpa foi sua. Como é bom se livrar desse fardo. Com medo de me ver egoísta, passei a compartilhar responsabilidades por fracassos que não me diziam respeito, sobretudo com relação à felicidade dos que estão ou estiveram à minha volta. Passei a administrar cautelosamente as frustrações dos outros. Fiquei horrorizada ao perceber que há uma paz que é incomunicável e uma parcela de doçura em se viver que é absolutamente individual. Para mim, virar as costas para alguém é um ato violento, ainda que a agressão por não seguir em diante recaia sobre mim.

Por um motivo ou por outro, amamos. E algumas vozes nos são quase irresistíveis. Vemos nossos queridos tombarem, tentamos segura-los, caímos juntos. Quão grande é a dor no peito ao perceber que a queda foi proposital. A culpa nem sempre é nossa. Muitas vezes, meu bem, a culpa é só sua. Tendo a pensar que contribuí com o apocalipse por não ter conseguido salvar o mundo. Porém andei lendo na parede de um viaduto que só Jesus salva e acabei desistindo de lamentar por você. De enaltecer suas qualidades para salva-lo das críticas.

Não adianta negar: só sua, a culpa. A maturidade faltou em você e eu não quero mais fingir que não enxergo. Vejo tudo, só me faltava coragem para expressar. Escrevo, portanto, para lhe dizer que sua imbecilidade não teve limites e que não vou mais te defender.

O meu recomeço é o mais básico de todos: admedir, sem peso de sentir alívio, que a culpa foi sua.

3.2.15

Larga o selfie, vamos de together

Não é que me falte nada. Mas não sobeja. Não transborda. Não faz o peito parar, descompassado. Quanto mais vivo, mais fico entendida de que a vida não é inteligível. Milhares de coisas nos escapam: estejam escorregando por entre os dedos, sejam expulsas pelas nossas próprias mãos.

Por quanto tempo conseguiremos atuar sem sermos nós mesmos? Por quantos metros precisamos nos soterrar para sobreviver?

Fico atarantada. Empanzinada dessa guloseima virtual que é oferecida todos os dias. Euforia aqui, tragédia lá. A gente vê, vê, sem tocar. Aprendemos a nos relacionar com espectros, inclusive de nós mesmos. Há tanto esforço para uma adaptação, que esquecemos de levar a nós mesmos na bagagem. E lá vamos nós para Europa. Para Cuba. A gente vai se deixando.

Tenho uma dificuldade real em apreciar o apetecível ou me apaixonar pelo amável. Meu coração tem mania de ressignificar coisas e pessoas, de modo que um nariz torto ou um monte de problemas não me são assim tão asquerosos. Em troca, não nego, tenho a expectativa de que aqueles que me escolham façam questão dos meus marshmallows e de minhas farpas.

Entretanto, ao que parece, essa não é uma boa estratégia. Mas. Admito que não sou vencedora o tempo todo e que uso pijamas ridículos que minha avó me deu. Admito que abro biscoitos e não os vedo, de modo de amoleço tudo, de forma ignorante. Admito que inúmeras vezes bebi toda a água da garrafa, sem repor. Entretanto, ao que parece, erro meu: a galera continua na praia having fun, numa vida super espetacular.

Eu não acredito nisso e se você é assim, não acredito em você. A gente tem muitas lágrimas e angústias e perrengues. E acho que isso nos humaniza. Prefiro passar pelas minhas inquietações do que ser um robô da alegria.

No dia a dia, pessoas que nós amamos sofrem e o nosso coração fica partido e compartilhado com elas. Nesse mundo de selfie, a gente só pede para que as pessoas nos vejam da nossa perspectiva, sem darmos espaço para o olhar do outro. Onde estarão as fotos mal enquadradas. As cabeças cortadas?

Termos que ser bonitos rápido, curtidos e curtintes, rápido. Amar veloz, despegar ligeiro. Me pergunto em que momento chegam as flores. Em que hora reina aquele tédio de paz. Não se iluda e ouça o que eu digo: o amor é importante e é por ele que devemos buscar.

Já conheci muitos cabeça de minhoca que procuram se realizar repetindo mimeticamente a experiência do outro. Fica ridículo. Um homem feito usando calças que não cabem. Acho mais triste, porém, aqueles que têm um coração de ouro, mas são dominados pelo medo. Precisam se travestir para se sentirem seguros. Imagino quanta dor não passa por esse peito, que fica pulsando, sem ter para onde jorrar.

O barato é ser estupidamente feliz. Meu caro, sejamos apenas nós. Together também é bom.

18.1.15

All we need is un chokito d’amour

Tenho para mim que no verão muitas coisas derretem, pra nunca mais serem as mesmas. Desde o protetor labial de manteiga de cacau até aquela paixãozinha, docemente cultivada em tempos de paz. Esse período do carnaval é uma delícia, as meninas usam flores na cabeça, os meninos portam capas e tudo é muito divertido. A peruca torta faz graça, um He-man gordão é o máximo. Essa suspensão das críticas e essa liberdade para ser ridículo é o que nos faz aguentar o resto do ano.

Por outro lado, uma questão que acho curiosíssima é a suspensão do amor. Queridinho, poucos são aqueles que unem corações, trapos e fidelidades nesse período. Estica-se a massa até chegar março, umas furam, outras resistem. Fica aí a margem de risco. Isso tudo porque o parâmetro é a quantidade e não a qualidade das relações e das emoções. Sentir-se bombástico. Essa é a palavra de ordem. Causar. O que, para quem e para onde ninguém sabe muito bem.

Particularmente acho que é uma fase necessária, que a maioria das pessoas precisa enfrentar. Seja no carnaval, seja no feriado de Zumbi. É importante que nos sintamos deslumbrantes e potencialmente extraordinários. O problema é quando isso nunca passa. Fica perigoso e, acima de tudo, fica muito feio.

Bauman tem um livro que se chama Vidas líquidas (título bastante ridicularizado pelos meus irmãos). Nele, o autor fala sobre essa fluidez desenfreada das relações e essa não permanência cogente. Eu iria além, acho que muitos desses laços foram como que projetadas por uma luz: um Datashow emocional, expõe um super laço que está ali enquanto não precisamos toca-lo.

Se os nossos pais e avós reclamavam das relações rígidas e sufocantes pelas quais tiveram que sobreviver; nós, por outro lado, talvez nos queixemos da efemeridade das coisas. Rápido e ligeiro: curto e fugaz.

Não vou aqui evocar textos bíblicos, nem empunhar um tom de preciosismo. Mas penso que as pessoas estão muito sem esperanças nelas mesmas e nas outras, de modo que escolhem não perseverar. Talvez o que mais venha me incomodando, nessa vida adulta, é uma espécie de realidade aparente de que o amor não existe. Quando falo em amor, digo amor mesmo. Daqueles dos bons. E mais, quando ele existe, não garante felicidade.

Não tenho as respostas para todos esses questionamentos. Primeiro, porque não sou guru, segundo, porque não sou tão esperta assim. Só sei que está tudo feito de papelão e ki-suco. Uns sentimentos pobres e descartáveis que oferecemos a quem nos procura. Cobre-se a tatuagem com um tubarão lunático, meia dúzias de fotos charmantes na rede social e pronto. Acabou. E o pior, acaba mesmo.

Eu acho impressionante. Não é que ficaremos por aí chutando pedra, bebendo cachaça no Bar do Bigode. Mas esse detox instantâneo da paixão não é para mim não. Quando a gente arranca qualquer coisa do peito, dói. Mesmo que seja erva daninha. Aquela pessoa ficou o doninho do seu core e destronar é sempre uma revolução sangrenta.

O mais incrível de tudo é que ninguém domina a arte do caimento de ficha. Dá um clique e pronto. A gente se apaixona. Clic. A gente desama. Clic. Nunca mais passo por isso. Clic. Lá vem estória.


A gente namora, casa, pega. Gosta do marido, mas amou o peguete mais que  tudo. De todos os sentimentos, o amor é o mais livre. Amemo-nos-me.

12.1.15

Despedida, nossa bailarina, Pa.ir.s

Ainda bem que faz doer o coração até dar um nó na garganta. Sinal de que há amor. E muito.

Há muitas coisas bonitas na vida. Adoro meus olhos, por exemplo. Mas hoje falaremos de amizade. Acho que podemos considerar amigo aquele que extrai nossa melhor gargalhada e aquele que dá o melhor abraço. Eu, pelo menos, quando vejo um amigo, mesmo com hora marcada, mesmo que seja todos os dias. Quando meus olhos pousam naquela pessoa, meu coração dá um saltinho. Tamborila, dizendo: ali, ali: achamos.

Há alguns dias meu peito anda descompassado porque uma grande amiga vai se mudar. Ela vai realizar um sonho e será chique nas Zoropa. Que vai ser bom: todo mundo sabe. Que vai ser bonito: tenho certeza. Dá vontade de soltar fogos. Dá vontade de chorar como bebê com cólicas: insistentemente e bem alto. A verdade é que fomos feitos para uma eternidade-grudadinha e deixar ir o que nos faz bem é, e sempre será, difícil.

Tentei escrever esse texto há tempos. E percebi agora que, eu mesma, não sei como me dizer em presente. Oscilo entre a vontade de adiantar o tempo e de rebobina-lo. Odeio despedir. Mas odiaria mais ainda não ter a quem dizer adeus. Não ver os sonhos estampados nas vidas de quem amo.

O que eu te desejo é uma felicidade megatrônica. Descobertas estrambólicas. Muita andança e deslumbramento. Desejo que os medos caiam um a um amolengados. bobocas, apáticos. Desejo que você seja linda. E mais linda do que linda, a ponto de não caber mais em adjetivo nenhum.

A gente vai estar aqui. Vai estar lá. Estaremos todos juntos, amassadinhos no seu peito. Morninhos nesse amor que você nos dá.

Então, que venha Paris. Que venham as novidades. Que venham os oui oui.

Eu, com meu francês pequenucho, e cheia de carinho. Te digo:

Merci
pour
tout, chuchu.

dejà vu au revoir.