25.9.10

Que fim?

Certa vez, tive uma experiência miraculosa. A situação é a seguinte: eu andava amuada, cansada e tristonha. E era tão impressionante meu estado que, ao passar pelas ruas, eu acabava assustando as pessoas. Olhava pros bebês e eles choravam; cumprimentava as velhinhas e elas deixavam a dentadura escapulir... os cachorros escondiam o focinho e faziam xixi, tão impactados que ficavam com a minha presença. Eu achava tudo aquilo muito esquisito, mas não imaginava como uma pessoa com todos os dentes e olhar delicado poderia criar tanto reboliço.


Foi um velho mago alcoólatra que me revelou a verdade toda. Veja só como são as coisas. Estava eu passando pela calçada, quando Zé Otávio, meu vizinho, falou:
- Eu sei do seu mal. Conheço de perto sua maldição.

Ora ora, fiquei extremamente alarmada, porque com maldição pessoal não se brinca. E eu tão fofinha...com encargos tão sinistramente atrelados à minha existência. Obviamente fiquei inquieta. Resolvi ocupar minha mente com seriados americanos, músicas nordestinas e enigmas orientais. Foi inútil. Aquela sensação de maldição, profunda e totalmente condizente. Sim, Zé Otaviano tinha razão: eu estava almaldiçoada.

Meu cérebro não funcionava com um sincronismo muito louvável, de modo que eu não conseguia pensar em uma saída. Uma frase, uma atitude bombástica. Minha cabeça estava vazia de maiores atividades. Eu só pensava curtinho e de duas em duas horas. Sabia que havia um mago, uma maldição e uns probleminhas de relacionamento entre eu e o mundo. Parece que eu andava causando repulsas. Eu, criatura meiga e fofa, com todos os dentes. Certo.

Fato era que isso tudo me deixava extremamente chocada, pois que sempre fui muito graciosa e elogiada pelos meus familiares e de uma hora pra outra me transformo. Enfim. Dificuldades na absorção da realidade, todos temos esses períodos. Confesso que fiquei deprimida de meu assistente - e possível solucionador do mistério - ser meu vizinho bêbado. Ele andava de bengalas e tinha uma fala truncada. O que esperamos de um sábio moderno? No mínimo, é um professor universitário, respeitador das regras de regência, advérbios super invariáveis, conhecedor de cálculos, fazedor de integrais. Mas não. Não. E isso já me deixava arrasada, perceba que a minha estória de vida começava a se transformar em um conto tosco.

Sem pensamentos preciosos, gastava a maior parte do dia me dedicando ao sono e à observância do horário eleitoral. Sinceramente, achava que a injustiça que se instalava na minha vida era enorme. E fui ficando aborrecida por um tempo e mais um e mais um, até que se formasse um conjunto quase infinito de tempos, daqueles que nos inquietam e começam a se avolumar. Aquele tempo gordo e enfadado. Admito que fiquei sem escovar os dentes alguns dias e que me entreguei devassamente ao pote de doce de leite. Fiz loucuras. Não me julgue. Bebia pouca água, não tirei o esmalte das minhas unhas e usei o mesmo sutiã por oito dias seguidos.

Em um dia de sol, fui comprar batata palha na mercearia no fim da minha rua. Fui com meu short verde, descombinado com a minha blusa vinho. Usava os chinelos do meu irmão e o cabelo preso como o da Olívia Palito. Fui lá. Eu tinha uma missão: comprar um produto industrializado. O que eu não sabia era que o meu vizinho Zé Zezinho iria sair de trás de uma árvore e golpear minha canela com aquela bengala nojenta.

- O que é isso seu louco?! – eu gritei.
- Um golpe, sua burra. – ele respondeu secamente.

Saí correndo, tropecei numa raiz e voei uns três metros. Fui estacionar bem perto do degrau da minha casa, com várias pedrinhas encravadas no cotovelo e queixo. Não chorei, nem tive raiva. Levantei, organizei meus ferimentos e almocei. Conforme era previsto. Depois da última garfada, minha mãe me olhou de uma forma diferente, como quem estava perdendo minha imagem e comecei a desconfiar que ela não pudesse mais me enxergar. Uma angústia invadiu meu estômago e começou a revolver minhas entranhas. Comecei a suar e ficar tonta, mas parece que ninguém se importava: não tiraram meu prato da mesa, nem me ofereceram sobremesa. E assim, aos poucos, tudo foi se ausentando. Esvaziaram meu quarto, deram meus livros.

E, de repente, eu estava sem lar, sem entender o que acontecia. O único que ainda me reconhecia era o Zé e ele se tornou meu amigo de silêncio. Ele se embebedava com as dores da vida e eu continuava ébria da minha ignorância. Comecei a vagar pela noite, caçando estrelas com os olhos, encurralando brisas com as mãos. Até que um dia não agüentei e me rendi:

- Zé, o que há comigo?
- Esquecimento, minha filha.
- Esquecimento de quê?
- Viu?! – ele gargalhou.

Eu comecei a chorar muito. Porque não me lembrava de nada de tão importante que eu tivesse esquecido. Eu percorri datas, fatos, temperaturas. E passei muito tempo recordando, mas eu era como um aquário que deseja ser oceano. Coitadinha de mim.

- Seu Zé Otávio, qual é meu mal?
- Minha filha, seu mal é aquilo que você quiser.
- Meus anseios são minha maldição?
- Não, querida. Não. – ele riu.
- Eu não entendo.
- Nem eu! – ele disse calmamente.
- Então por que você é o mago da estória? – perguntei irritada.
- Ué, porque você me colocou aqui.
- E aquele papo de maldição?
- Minha filha, eu sou só um personagem qualquer. Você quem inventa minhas falas.
- É?
- Pois sim. São boas, né? – ele disse com uma piscadela.
- Eu gosto. – eu balbuciei triste.
- Ei, você é autora, não pode ficar assim tão finita.
- E o lance da cura miraculosa? – eu resolvi indagar.
- Eu também não estou sabendo de nada.
- Ai, Zé. E agora?
- Sei lá, me transforma num príncipe e vamos morar no Caribe. Troca meu apelido para Diguinho.
- Será? – fiquei me perguntando indecisa.
- Uma possibilidade, foi uma idéia. A gente podia fundar um Império, ensinar artes marciais para o nosso povo.
- Não, deixa isso pra lá. Vou acabar com isso tudo.
- Mas e eu? – ele já tinha se travestido completamente e agora era um homem forte de pele dourada e olhos verdes.
- Eita, não sei.
- Cara, não me mata, isso é maior vacilo. Tudo bem que não tenhamos um romance por causa do meu passado. Agora, se mandar, cheia das narrativas, também não acho isso certo.
- Se eu acabar com a estória você morre? – eu perguntei.
- Vai saber. Gente, eu estava quieto na minha inexistência, então eu nasço bêbado e mago. Por quê?! O que justifica essa malvadeza?
- É que eu não estava conseguindo estudar.
- Matéria difícil? –ele perguntou.
- Um pouco. – disse envergonhada.
- Eu entendo. Vai, me mata. Acaba comigo.
- Como?
- Mas que autora incompetente! Um ponto final. Coloca um ponto final.



.

7.7.10

Maldadiagem

Você magoou meu coração. Fez um rombo do tamanho de um avião ultra-sônico.

Maldade pura. Essas coisas não se deve fazer. Deve não. Ai.

Agora fico andando com esse sonho estrangulado, de pescoço quebrado e pernas se arrastando. Carrego a esperança morta como uma espécie de véu de noiva, só que roto e amarelado. Uma desolação.
Meu coração, coitado, está encolhido feito caroço na uva: com medos de ser devorado. Pois a semente quer logo se lançar na terra e dispensa passeios no ventre dos comilões.
Mas eis a injustiça do mundo. Deram uma mordida onde eu estava e fui carregada, toda envolta de polpa. E tendo minha germinação adiada fiquei lá, ensebada na espera. Ouvindo o tempo. Contando ventos. Cheia de vontade de nascer. Mas não, tragaram-me sem querer. E aqui sou inútil, uma pedrinha, um incômodo bah! Um deslise paf! Mas se me derem um solo, hm...um solo para me cobrir: eu viro toda árvore, sou toda fruto e alimento um mundo inteiro.

25.5.10

Sideral

- Estou enfrentando um problema grave, meu senhor.
- Qual probrema, minha filha?
- Ando sofrendo de nervos.
- Nervosa?
- Um pouco. É que toda vez que olho para céu fico com ganas de ser planeta.
- Mas que tipo de planeuta?
- Planeta do tipo normal.
- Com anéis ou sem?
- Sem. Por quê?
- Pra saber.
- Ah...
- É brabo.
- E o senhor acha que é grave o meu caso?
- Isso eu não tenho como informar, senhorita.
- E se fosse com anéis?
- Como?
- Com anéis do tipo rodado mesmo, com poeiras cósmicas...
- Também não ia saber.
- Ah...
- Ô só, agora se fosse...
- ...se fosse???
- ...se fosse bicicleuta eu bem que sabia.
- E saberia como?
- Ué, sabência daquelas que a gente nasce cheio.

Um ônibus passou e eles ficaram inertes no tempo. Como nada mais acontecia, ele resolveu confessar:

-Já quis ser bicicreta. Vermelha com os aro tudo de alumínu, banco preto com capinha macia. Mas é que eu que não queria ter garupa e nem buzina.
- Por quê?
- Porque barulho bagunça o silêncio. E garupa enfarda a gente, moça.
- Eu queria ser planeta.
- É, a senhorita disse inda pouco. Deve de gostar dos universos das galáxias dos cosmos do mundão a fora, né? Mas, sem querer ser intrometido, ia de sê planeta vazio ou com gente de três olho, quatro braço?
- Só pensei em ser planeta mesmo.
- Então é por isso que sofre dos nervo.
- Por quê?
- Oxi, por quê?! Fica prendendo os imaginário tudo dentro da cabeça, não fica dando nem idéia pros pensamento de modo de que eles ficam se empurrando lá dentro das mente tudo sem saber que tipo de planeta vai ser.

Ele respirou fundo e disse triunfante:
- Nem se preucupe não que seu dignósco eu já sei: moça, cê sofre de falta de acreditar até o fim.

Ela parou. Piscou três vezes e disse:

- Serão marrons.
- Quantos olhos?
- Uns 15.

14.4.10

Dentística

- Vó, o que houve na sua boca? Você está falando estranho...
- A tentatura estava me matchucanto, atchei melhor tirar.

Elinda falava assoprando a própria boca que agora parecia folgada, envergonhada pela falta dental, punha a mão escondendo. E conversava muito, no sofá da casa, fazendo concha com as mãos e protegendo a boca dos olhares. Olhares perversos daqueles que possuem sorriso. Aninha sonolenta e pacífica, dialogava sobre canjica, colírio, chuva e perigos dos quais tinha se livrado. Já era tarde da noite e o cansaço se espraiava sobre elas, como uma coberta grossa e macia.

Dormiram.

Amanhecia e Aninha relutava, espremendo os minutos, tentando alongá-los e permanecer dormindo, intactada. Inútil. O mundo já havia acordado e ouvia as vozes de seus familiares tagarelando assuntos matinais. “Pão? Quero. Café? Com leite. Banho! Já vou.” A porta do quarto se abriu:

- Ana, seis horas – disse sua mãe.
- Eu sei.

Saiu com o cabelo pro alto e os pés enterrados no chão, precisava ter dormido duas vezes mais. Com a letargia daqueles que se sentem estafados, observou um movimento significativo na casa. Seu pai abria e fechava bolsas; andava desconfiado, vasculhando tudo. Seu comportamento era curioso: agachava pela casa com a toalha na mão e com o cinto colocado só pela metade.

- Pai?
- Ana, sua avó perdeu a dentadura.
- Nossa, ontem ela me disse que tinha tirado, de noite.
- A gente tem que sair cedo hoje, ela tem consulta com o oftomologista. Ai meu Deus do céu!

Dez minutos se passaram. Nesse ponto a busca estava frenética, Elinda procurava em cima dos armários, ali, bem do lado do teto. Walter se esgueirava pelos cantos do mundo, lugares obscuros.

- Eu guardei! - berrou Elinda.
- Achou? - respondeu Walter, aliviado.
- Não, eu guardei ontem...numa bolsa...

Elinda apontou para meia dúzia de bolsas escancaradas e remexidas. Acontece que Elinda estava com catarata e não estava discernido muito o visual das coisas. Veja só que seu ponto principal de busca foi justamente a bolsa de malhar do seu neto Teorodo. Alvoroçados, os envolvidos resolveram bisbilhotar os pertences uns dos outros. A confusão maior se deu quando se depararam com a malinha de Gracinha. Gracinha fazia odontologia e sua mala rosa estava repleta de dentes, não tardou para que Elinda proferisse:

- Foi Gracinha! Ela pegou minha dentadura para levar para faculdade.

No começo todos riram, mas, pouco a pouco a dúvida foi se instalando nos corações e começaram a imaginar...imaginar.

- Gracinha! Gracinha, acorde!
- O que foi? - balbuciava como quem não tivesse domínio sobre suas próprias bochechas.
- Você pegou a dentadura da minha avó?
- Oi? - Gracinha levantou o tronco e abriu os olhos até a metade.
- Por engano, não sei...vc viu a dentadura?

Aquilo foi demais para a jovem, seu intelecto estava dominado pelo sono, repentinamente ela sucumbiu: virou para o lado e começou a roncar.

Não houve quem não cismasse, um cheiro de dissimulação e covardia emanava. Elinda apertava dos olhos, de boca encolhida. De repente falou, com um ar de índia feiticeira:

- Foi Gracinha.

Walter fez cara de deboche, mas, numa troca de olhares com Aninha, demonstrou preocupação. Chamou a filha mais velha para deliberarem.

-Você acha que foi Gracinha? - Walter disse em voz grave.
- Pai, ela já tem tantas dentaduras. Inclusive uma enorme, com dentes gigantes. Ganhou da colgate, lembra?
- Não tem mesmo necessidade de uma coisa dessas, ela mesma tem todos os dentes, até sisos inclusos.
- A ambição não tem limites, paizinho.

Elinda andava pela casa com ares de adivinha poderosa. Neste mesmo instante, Walter começou a chamar:

- Chiquita! Chiquita!
- Quem é essa, pai? - Teodoro estava visivelmente alarmado.
- É a dentatura da sua avó. Acho que ela fugiu.

Elinda despertou repentinamente:

- Fugiu. Será?
- Deve estar no ponto de ônibus agora, querendo ir para Barra de São João. - disse Walter.
- Tentando voltar para casa, coitada.
- Mas a Chiquita não sabe que é perigoso sair sozinha? Ainda mais ela, dentadura de mulher. - ele acrescentou.
- E já é uma senhora. Deve ter uns 40 anos.

Aninha não conseguia para de pensar como aqueles dentes postiços eram especiais. O sorriso da sua avó se fora. Só haveria espaço para seriedade. Não. Ela jurou que desvendaria este mistério. Acharia a dentatura Chiquita, não deixaria as gengivas de Elinda vazias.

continua...

5.3.10

Itens urgentes

No começo do ano fiz uma lista metódica e esbaforida daquilo que era essencial obter. O núcleo do fundamental consistia em duas meias coloridas, um esquadro da indústria bandeirante e um halter.

Ora ora, eu estava desconfiada de uma certa coisa e precisava averiguar. Para um bom procedimento de investigação é muito importante os instrumentos adequados. Esquadro para medição, meias para aquecer e halter para dar força. A vida não foge muito dessas três necessidades básicas.

Desde pequena ouvi falar de estórias como saci, mula sem cabeça, vampiros. Eu sentia conexão, uma espécie de cócegas nas bochechas quando se falava de lendas. Pois bem. Não me saia da cabeça um pensamento e de tanto ele se demorar cá dentro de mim, o tal pensamento tomou o status de idéia e se fincou nas minhas suposições.

Cada vez mais confirmava minha teoria e me aproximava de uma verdade puramente factual. Até que quarta-feira eu desvendei: sou uma sereia. Assistindo sessão da tarde, observei bem o enredo de Aquamarine e não pude concluir outra coisa. Fiquei tão impressionada que mal consegui me mover no sofá.

Comecei olhar bem fixamente para minha perna e vi umas escaminhas crescendo, do nada, minha blusa de pijama sumiu e no lugar fiquei com um sutiã de conchas. E o meu cabelo, ficou com aquele topete da Ariel, só não fiquei ruiva.

Fui ficando com muito medo, porque eu moro aqui na Zona Norte do Rio e o mar mais perto é ali num piscinão de Ramos. Achei meio decadente e comecei a suar frio. Imaginei toda aquela movimentação para me levar para minha origem, eu na maca, pessoas ao redor. Meu Deus do céu, o que a minha vizinha D. Francisca não ia pensar?! E tudo isso, para ficar represada lá em Ramos. Não, me negava. Eu queria desaguar ali em Ipanema, bem estilosa, com maquiagem a prova d’água, tudo nos conformes.

A transformação não parava de acontecer, meus pés estavam sumindo e um rabinho safado estava crescendo. Pelo menos brilhava, achei maior barato. Passei mesmo um aperto quando as escamas chegaram até a cintura. Quis fazer xixi, mas não dava, toda a parte debaixo fora unificada. Senti que estava enchendo, aquele nervoso líquido foi me tomando, que desassossego. Que aconteceria comigo?

Adivinha.

Adivinha o que aconteceu.

Comecei a suar como uma porca, escorria baba e lágrimas. Impressionante. Molhou a almofada toda e acabou escangalhando o controle remoto que estava no meu colo. Depois deve virar uréia, que nem os peixes. Aliás, que seria eu, mamífera? Será que eu também iria despejar um monte de ovinhos no mar, toda aquela reprodução desinteressante? Eita ferro, como nascem as sereias? Será que minha mãe tinha me enganado?

O raciocínio me vinha na velocidade da luz: Eu desconfiara! Minha mamãe sempre soube, aquele conselhos estúpidos de não ir para o fundo do mar, era temor de eu encontrar meu verdadeiro lar. Aposto que meu pai me achou numa rede, na beira da Praia do Forno, numa daquelas pescarias dele. Ó! Por isso que sempre gostei de tomar banhos longos, por isso que não gostava de berinjela, por isso que não conseguia aprender matemática. Tudo fazia sentido.

Resolvi que precisava contar para os meus familiares, liguei para minha mãe.

- Mãe...
- Oi, Suzana. O que você quer?
-Mãe, virei sereia...
- Suzana, aproveita que você está sem fazer nada e arruma as coisas para o lanche quando seu irmão chegar...
-Mãe! Não posso! Eu estou com um rabo imenso, meus pés sumiram. Eu só consigo nadar!
- Suzana, vou repetir só mais uma vez: arrume o lanche para o Tadeu.
- Mãe, como eu vou chegar até a cozinha?! Eu não consigo mais andar, só sei nadar.
- Sei, faz o seguinte então, vai cuspindo até se formar um rio da sala até a cozinha e vai nadando até lá fazer o que pedi.

Desliguei. Aquela ironia fingida. Eu havia desmascarado aquela mulher e ela reagiu de forma feroz. Fiquei algum tempo imaginado como seria minha vida marítima. De repente, ouvi um barulho no portão, era o Tadeu, ouvi a voz de mi madre. Levantei subitamente e disparei para a cafeteira, cortei três pães numa sequência veloz. Ela estava colocando o carro na garagem. Arrumei a mesa. Organizei as geléias. Separei xícaras. Eles abriram a porta.

- Ué, onde está a sereia? Que topete é esse, garota?

Naquele momento me dei conta que estava na minha forma humana. Corri para a sala e encontrei quatro escamas brilhosas e as conchas do meu sutiã.

Não foi dessa vez.

5.2.10

Mergulho

às vezes, Deus nos deixa tão felizes que parece que engolimos mil estrelas, até nossas tripas cintilam.

22.1.10

Perdendo sentidos

Algo estranho está acontecendo: a perda dos olhos. Um belo dia me acordei com uma úlcera de córneas e cataratas múltiplas. Desde então, passei a desenxergar.

Bati três vezes a cabeça na porta aberta, de alguma maneira, o fato de não visualizar o caminho obstava minha passagem. Veja que mesmo de noite, na hora que não precisaria ver muita coisa, o sono me escapulia, a sensação de cegueira me tomava e eu me punha a andarilhar pela casa. E mesmo sabendo que havia muita escuridão, sobrepujava a vontade de captar clarões. Ficava como uma caçadora, abrindo e fechando os olhos, repetindo palavras mágicas; porém, só me sobrava uma nesga de contornos.

Sempre fui de ver muita coisa, quando pequena tinha um amigo invisível e mesmo a água, que dizem os cientistas que é transparente, eu vejo. Vejo águas em tudo que é canto, inclusive há um monte delas, aglomeradas, que de tanta excitação formam ondas. E eu vejo isso tudo. Minha visão sempre foi perfeita. E de tão boa, eu conseguia até ver por dentro dos meus olhos. Eu via micróbios, venenos, ácido sulfúrico.

De repente, fico só enxergando a pausa. Porque o escuro é a pausa da luz. Se há luz o movimento se instala, os cílios vibram, os nervos sorvem os objetos. Estou de jejum.

Minha irmã tentou conversar comigo, disse: “Sossegue, Luna. Todo mundo tem umas caolhices, umas desenxergâncias.” Ela é boa comigo e eu resolvi acatar. Mantive meus olhos fechados, bem cerrados... o esquisito foi que não saia palavra da minha boca. As comportas se fecharam. Minha família ficou alarmada e chamaram a vizinha para me benzer. Aquela confusão: “Ai, meu Jesus, a garota ficou muda!” Minha mãe ficou murcha e entre um suspiro e outro, lamentava: “Gostava tanto de uma conversinha fiada com essa minha filha. Ah, mas que tristezainha!”

O outro sentido que eu perdi foi o da firmeza de pernas. Toda vez que eu começava a andar, minhas pernas ficavam tremendas. Tudo que era tremilique de alma se escoava para minha perna. Lastimável. Eu me assustava com tudo e só sentava depois de dar duas voltas no meu próprio eixo. Rodava: uma: duas vezes e sentava. Aí, sim, com bastante segurança de que naquele lugar não morava um abismo, eu me reclinava.

Nessa época, eu fiquei indo para lugares improváveis. Fui andando, andando e fui parar dentro do cesto de roupa suja, já no outro dia dei um tibum na vasilha de água da minha cachorra. Meu tamanho também começou a variar, teve uma vez que me medi e eu estava com 1,93 m de altura! Minhas calças ficaram curtas e minhas saias, indecentes. Tive até de ficar em casa, por falta de roupa mesmo.

Nem meu tato, nem meu paladar ficaram mais aguçados. Isso é tudo crendice. O que aconteceu de fato, e isso é garantido, foi uma pequena alteração na minha audição, fiquei surda de um ouvido.

Desperto

Ao se acordar estabelecemos paralelos de realidade. Ao despertar, nos estabelecemos no tangível. Então, se os olhos são abertos, uma brisa invade a visão e tudo se reveste de sopro.

Um certo porém me ronda e me envolve. Faz laços nas minhas pernas e firulas em meus ombros e trança meus cabelos. Há um senso de existência de algo que escapa –
- e onde estaria?

Sim, há um adorno recheado de delícias que preenche os mundos do meu imaginário, uma terra letal e perigosa. Uma terra de riso e paz. E ao abrir meras pálpebras, um mundo se desenrola na minha frente, como um manto que se espraia. Como uma glória cheia de névoa, que vai flutuando.

Recebi um ultimado por meio de uma ave selvagem, nele, escrito com letras de água, havia uma poesia tosca e gosmenta. Viscosa e feia. Resolvi lê-la, com a coragem de um urso polar, eis que da minha boca soava sons de sinos e barulhos de flores desmaiadas.

Era um sonho misturado de significado e bizarrices. O sonho é o contorno de curvas. É a coisa em si mesma, mas cheia de rodopios indecifráveis.

7.1.10

Verdade

Deixei de escrever, recentemente. Toda vez que uma palavra escapulia, eu a prensava com os dedos, até se fundisse com o papel e voltasse a não existir. O motivo desta artimanha é um mistério.


Há muitos boatos. Cada um querendo demonstrar aquilo que é insabível. Bobagem. Em um recente mais atual, resolvi mudar de estratégia e escrever fervorosamente. A justificativa também não se dá. A querência de escrever mais ou menos pode ser vazia de motivações.

Se há escrevidão, foi porque gotejou palavra, se há silencidão, é porque as palavras ficaram invisíveis. Tanto faz. O importante é o tato.

Certa vez, entreguei uma poesia em um papel em branco. Tinha linhas azuis porque não consigo escrever reto, mesmo quando escrevo sem escrevência. O destinatário ficou lisonjeado e ao passar as mãos sobre aquele papel, soube a relevância. Relevou os dedos e ia lendo aquilo que não escrevi.

No final, o que se diz é o raso. E é no profundo que se abriga a nossa existência. É no profundo que se alberga a nossa resistência.

E quem tem coragens de tocar o outro assim: quando ele se aparenta com o que não se vê?: quando o outro é tão extenso, que não cabe na visão? Ninguém se refrigera no fato de não haver respostas plausíveis. A questão que desvendei é bem descobrível a olho nu: o desóbvio tem aspecto de demônio.

Veja que quando se roça no desconhecido, a reação da pele é se eriçar. Cheia de arrepios. Por exemplo, escrever em branco não é coisa certa de se fazer. Apossível. Da mesma forma que não se deve pressionar as palavras contra o papel. Sem mencionar que não é normal escrever como sanfona: muito e depois pouco.

Se há surpresas ou desconexões, ora, o que se demonstra logo é a necessidade de uma solução. A solução que afugente o demônio do desóbvio. Parece que as mãos só estão bem se estiverem dadas. Mãos dativas. Aquele confortozinho de dez dedos. Quem esqueceu que as mãos são autônomas?

E quem desmencionou que algumas palavras podem ser assintomáticas? Há escritos e mais escritos. Eu escrevo vazio e cheio. Com palavras ou sem, porque a minha expressão de alma já ultrapassou a necessidade de ser real. Basta ser verdade.

1.1.10

Ano novo

veja bem:




um novo ano se desdobrou

como um tapete, os dias vindouros se colocam aos nossos pés

que nossos passos sejam firmes

que o caminho seja macio

que o paraíso se aconchegue em nossas vidas