25.9.10

Que fim?

Certa vez, tive uma experiência miraculosa. A situação é a seguinte: eu andava amuada, cansada e tristonha. E era tão impressionante meu estado que, ao passar pelas ruas, eu acabava assustando as pessoas. Olhava pros bebês e eles choravam; cumprimentava as velhinhas e elas deixavam a dentadura escapulir... os cachorros escondiam o focinho e faziam xixi, tão impactados que ficavam com a minha presença. Eu achava tudo aquilo muito esquisito, mas não imaginava como uma pessoa com todos os dentes e olhar delicado poderia criar tanto reboliço.


Foi um velho mago alcoólatra que me revelou a verdade toda. Veja só como são as coisas. Estava eu passando pela calçada, quando Zé Otávio, meu vizinho, falou:
- Eu sei do seu mal. Conheço de perto sua maldição.

Ora ora, fiquei extremamente alarmada, porque com maldição pessoal não se brinca. E eu tão fofinha...com encargos tão sinistramente atrelados à minha existência. Obviamente fiquei inquieta. Resolvi ocupar minha mente com seriados americanos, músicas nordestinas e enigmas orientais. Foi inútil. Aquela sensação de maldição, profunda e totalmente condizente. Sim, Zé Otaviano tinha razão: eu estava almaldiçoada.

Meu cérebro não funcionava com um sincronismo muito louvável, de modo que eu não conseguia pensar em uma saída. Uma frase, uma atitude bombástica. Minha cabeça estava vazia de maiores atividades. Eu só pensava curtinho e de duas em duas horas. Sabia que havia um mago, uma maldição e uns probleminhas de relacionamento entre eu e o mundo. Parece que eu andava causando repulsas. Eu, criatura meiga e fofa, com todos os dentes. Certo.

Fato era que isso tudo me deixava extremamente chocada, pois que sempre fui muito graciosa e elogiada pelos meus familiares e de uma hora pra outra me transformo. Enfim. Dificuldades na absorção da realidade, todos temos esses períodos. Confesso que fiquei deprimida de meu assistente - e possível solucionador do mistério - ser meu vizinho bêbado. Ele andava de bengalas e tinha uma fala truncada. O que esperamos de um sábio moderno? No mínimo, é um professor universitário, respeitador das regras de regência, advérbios super invariáveis, conhecedor de cálculos, fazedor de integrais. Mas não. Não. E isso já me deixava arrasada, perceba que a minha estória de vida começava a se transformar em um conto tosco.

Sem pensamentos preciosos, gastava a maior parte do dia me dedicando ao sono e à observância do horário eleitoral. Sinceramente, achava que a injustiça que se instalava na minha vida era enorme. E fui ficando aborrecida por um tempo e mais um e mais um, até que se formasse um conjunto quase infinito de tempos, daqueles que nos inquietam e começam a se avolumar. Aquele tempo gordo e enfadado. Admito que fiquei sem escovar os dentes alguns dias e que me entreguei devassamente ao pote de doce de leite. Fiz loucuras. Não me julgue. Bebia pouca água, não tirei o esmalte das minhas unhas e usei o mesmo sutiã por oito dias seguidos.

Em um dia de sol, fui comprar batata palha na mercearia no fim da minha rua. Fui com meu short verde, descombinado com a minha blusa vinho. Usava os chinelos do meu irmão e o cabelo preso como o da Olívia Palito. Fui lá. Eu tinha uma missão: comprar um produto industrializado. O que eu não sabia era que o meu vizinho Zé Zezinho iria sair de trás de uma árvore e golpear minha canela com aquela bengala nojenta.

- O que é isso seu louco?! – eu gritei.
- Um golpe, sua burra. – ele respondeu secamente.

Saí correndo, tropecei numa raiz e voei uns três metros. Fui estacionar bem perto do degrau da minha casa, com várias pedrinhas encravadas no cotovelo e queixo. Não chorei, nem tive raiva. Levantei, organizei meus ferimentos e almocei. Conforme era previsto. Depois da última garfada, minha mãe me olhou de uma forma diferente, como quem estava perdendo minha imagem e comecei a desconfiar que ela não pudesse mais me enxergar. Uma angústia invadiu meu estômago e começou a revolver minhas entranhas. Comecei a suar e ficar tonta, mas parece que ninguém se importava: não tiraram meu prato da mesa, nem me ofereceram sobremesa. E assim, aos poucos, tudo foi se ausentando. Esvaziaram meu quarto, deram meus livros.

E, de repente, eu estava sem lar, sem entender o que acontecia. O único que ainda me reconhecia era o Zé e ele se tornou meu amigo de silêncio. Ele se embebedava com as dores da vida e eu continuava ébria da minha ignorância. Comecei a vagar pela noite, caçando estrelas com os olhos, encurralando brisas com as mãos. Até que um dia não agüentei e me rendi:

- Zé, o que há comigo?
- Esquecimento, minha filha.
- Esquecimento de quê?
- Viu?! – ele gargalhou.

Eu comecei a chorar muito. Porque não me lembrava de nada de tão importante que eu tivesse esquecido. Eu percorri datas, fatos, temperaturas. E passei muito tempo recordando, mas eu era como um aquário que deseja ser oceano. Coitadinha de mim.

- Seu Zé Otávio, qual é meu mal?
- Minha filha, seu mal é aquilo que você quiser.
- Meus anseios são minha maldição?
- Não, querida. Não. – ele riu.
- Eu não entendo.
- Nem eu! – ele disse calmamente.
- Então por que você é o mago da estória? – perguntei irritada.
- Ué, porque você me colocou aqui.
- E aquele papo de maldição?
- Minha filha, eu sou só um personagem qualquer. Você quem inventa minhas falas.
- É?
- Pois sim. São boas, né? – ele disse com uma piscadela.
- Eu gosto. – eu balbuciei triste.
- Ei, você é autora, não pode ficar assim tão finita.
- E o lance da cura miraculosa? – eu resolvi indagar.
- Eu também não estou sabendo de nada.
- Ai, Zé. E agora?
- Sei lá, me transforma num príncipe e vamos morar no Caribe. Troca meu apelido para Diguinho.
- Será? – fiquei me perguntando indecisa.
- Uma possibilidade, foi uma idéia. A gente podia fundar um Império, ensinar artes marciais para o nosso povo.
- Não, deixa isso pra lá. Vou acabar com isso tudo.
- Mas e eu? – ele já tinha se travestido completamente e agora era um homem forte de pele dourada e olhos verdes.
- Eita, não sei.
- Cara, não me mata, isso é maior vacilo. Tudo bem que não tenhamos um romance por causa do meu passado. Agora, se mandar, cheia das narrativas, também não acho isso certo.
- Se eu acabar com a estória você morre? – eu perguntei.
- Vai saber. Gente, eu estava quieto na minha inexistência, então eu nasço bêbado e mago. Por quê?! O que justifica essa malvadeza?
- É que eu não estava conseguindo estudar.
- Matéria difícil? –ele perguntou.
- Um pouco. – disse envergonhada.
- Eu entendo. Vai, me mata. Acaba comigo.
- Como?
- Mas que autora incompetente! Um ponto final. Coloca um ponto final.



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3 comentários:

Anônimo disse...

Vitrola, sabe, muitas vezes fico tão boquiaberta com os seus textos que meu cérebro dá nó e entra em greve. Nunca sei bem o que dizer diante da complexidade criativa da narrativa!
Acho que ando acupando em demasiado a minha mente com seriados americanos.
Tava com saudades de te ler. Me divirto sempre, às vezes com lágrimas, outras com sorrisos.
Beijocas!

Fernanda. disse...

cara!vir aqui é tão bom. saudade de você.

Fernanda. disse...

vivi, resolvi escrever outro comentário: seu texto me fez muito bem!=)