28.11.09

Be bum

Delícia.


Segui um bêbado que balbuciava todo arquejado. Foi andando na rua meio escura. Sem medo, persegui aquele trocar de pernas e farfalhar de braços.
Debaixo de um poste, eu vi uma cena mais linda que a fusão de três estrelas.
O bêbado estava era inebriado. E o seu corpo estava era cintilando.
Não balbuciava, o homem, cantava e não era de desequilíbrio os seus movimentos, mas de uma dança fantástica.
Ele tirou seu chapéu e balançou seu corpo. Abriu um buraco na rua e de lá tirou um violão, fez nascer um banquinho ficou ali. Tocando uma música tão cheia de sons.
O homem era bem moço e seus olhos azuis inhos. Brilhavam feito o mar outonal.

Imagine! Aquela luz postular e um moço-homem dedilhando melodias. Na medida em que ele abria a boca, os universos cantavam para ele. Ele tinha um cabelo de ouro. Um paletó cinza, com um lenço vermelho.

De repente, ele se levantou, mas a música não parou, porque até a realidade queria ceder. Ele veio todo maleável, me pegou pela mão e me mostrou como se faz o impossível. Nós dois ficamos embalando o tédio, empacotando tristezas, incinerando desolações.

Ainda hoje me lembro daquela noite, gosto de pensar em como a fantasia reinventou minhas verdades.

20.11.09

Zumbi

Tem horas que a gente cisma e é um sacrilégio daqueles. Veja bem, hoje é dia de Zumbi, assim, sorumbáticos mesmo, comemoraríamos o dia. Da consciência negra. Eu, meio pálida, fiquei observando a falta de honraria.

É que hoje, caminhando pelo meu bairro Americano, vi uma feira. E pensei: “Ora essa, não é feriado?”. Não. Ó, não! Meu corpo tremeu todo diante daqueles melões e morangos e laranjas. Uvas sem caroço. Bem no dia de Zumbi, ali, sendo comercializadas. Frutas em troco de dinheiro. Aquele capitalismo selvagem, de pessoas com olhos coloridos, com caldo de cana dentro da boca. Fiquei horrorizada.

Foi quando gritei. Larguei a bolsa que carregava, abri a boca bem pro alto e gritei. “Não!”. Enchi os pulmões e prolonguei as vogais o máximo que pude. Mas não deu certo, não deram a mínima bola. Meu descontentamento foi enorme quando uma jovem senhora pediu licença, porque queria ver os kiwis e eu estava na frente.

A minha reação foi correr, procurando meu lar. Chegando, vi meu irmão dando banho na cachorra. Ufa. Banho em cachorra. Só em dias especiais. Acredite. A paz então recobrou seu espaço e me aquietei.

Almocei. Fui dormir. Aquele soninho dos justos. Cochilei suando no verão que se instalava no meu quarto. E só acordei porque, pasme, um senhor começou a gritar na minha janela.

Atordoada e de pijamas ridículos, eu disse: “Meu senhor, eu estava dormindo e o senhor gritando me despertou. Fale em voz silenciosa, por favor.”

O senhor me falou: “Querida, sou vendedor de flores, não gostaria de comprar pétalas?”

Sonolenta, respondi: “Mas hoje é feriado, é dia de fazeção de nadaísmo.”

Resignado, o vendedor proclamou: “Então lhe vendo flores em botão. É flor de nada.”

Perguntei: “E quanto custa?”

O vendedor sorriu: “Custa um amor.”

“Não tenho.”

“Nenhum? Nem no passado?”

“Serve do passado?”

“Não.”


O vendedor ficou todo triste olhando pro chão e arrumando as pedrinhas com a ponta dos pés. Até eu fiquei decepcionada, logo num feriado tão consciente acontecer uma coisa dessas. Passou um tempinho e o sol começou a murchar também, o céu ficou todo desmantelado, deixando as cores escoarem pelo horizonte. Como já estava anoitecendo, resolvi permanecer de pijamas.

Sentei do lado da cama. O vendedor permanecia lá fora, empunhando as flores. Sentou na calçada. Quando a noite chegou mesmo, a lua veio fininha, pois estava desanimada com a notícia.

“Falta à moça um amor”, diziam.

Lá estava a lua. Fingida. Toda boazinha e delicada.

O vendedor começou a cantar, era uma música tão linda. O vento se sentiu mais leve e começou a soprar a melodia. Eu fui ouvindo. Ele cantava sobre amores extensos e profundos. Sobre pegar de mão, sorriso trêmulo.

E eu lá sentada, na minha cama de madeira. Com lençóis de cor clara. O pesar não se colava no meu peito, pelo contrário. As ondas do som fluíam e meu cabelo ficou mexendo suave. Gostoso.

 Acabei adormecendo de novo. Dia de feriado sempre me bate um cansaço. Lá dentro dos meus olhos fechados, senti me beijarem a testa e me falarem baixinho: “Um dia lhe trago suas flores, meu bem.”

16.11.09

Esquina

Outro dia parei na esquina da minha alma
e fiquei
ali
aguardando quem cruzaria aquele espaço.

Não houve pessoa corpórea
quem apareceu foi uma figura mitológica
ele tinha nariz de plástico vermelho
cabelo de peruca, em dois tufos
laterais
a boca dele era pintada e
nos olhos havia desenhos
a sua roupa era colorida
com bolinhas
e pendurada por um suspensório
roupa que se segura nos ombros

dentes amarelos e
aspecto de fantasia

seria lícito aparecer um
palhaço
quando estamos ouvindo piano e com ares de quem
fuma um charuto de flores?

que gracinha
que tamanco saltitante
sapateado
na esquina de mim: um espetáculo informal
do que seja simples e antigo

o palhaço ri pra mim
uma menina sapateia
eia! Sou eu! Com aqueles sapatos
sou a pareja dele
e juntos

balançamos o corpo numa dançazinha ridícula
daqueles que se divertem

de repente
recomeça aquela música clássica
lenta
com coro
e em francês

de repente
em um reflexo inesperado
eu me crio asas
e o palhaço vira
aurora boreal

que lindo!
aquelas nuvens de céus
percorrendo meu corpo
seria isso amor?
ou poesia?

- imaginação! – grita o palhaço.

depois de passado tudo isso
depois dos olhos abertos
depois que desdobrei a dita esquina e a fiz rua reta

me rio eu
me deságuo toda
me percorro

em sensações inventadas.

11.11.09

Pendura

A vida, meu caro, é um penduricalho


E penso que somos nós, viventes, as suas hastes



Seríamos para enfeite

ou é por vitalidade que vivemos?

Quem sabe?

3.11.09

Medonho

Aqui, neste lugar, se fala particularmente de um medo estrangulante. O medo do futuro não renovável, do presente perecível como pêra madura. O apodrecimento do gostoso da vida...assim, impune.

Nas frutas há muita água e no mar, muita leguminosidade. Inversão: o sólido escoa e o líquido lhe prende. Em observação contumaz, se vê o tanto de loucura que há no mundo. O mundo pêra madura.

Perceba que ontem fui dormir na minha outra casa e ouvi o mar entrando no quarto pela janela. Não era vento, era mar, ele tinha ondas e tentáculos. E conforme eu ia ressonando, o mar ia se instalando todo oceano ao meu redor. Transformei-me numa ilha, cheia de diversidades tropicais. Eu não tinha mais cama, eu levitava na água azul.

E não sei explicar como, mas eu enxergava tudo de olhos fechados. No quarto daquela minha outra casa é tudo muito escuro e a noite não apresenta nem sequer sombras, nem penumbras. Onde os olhos são inúteis, eu via com absoluta clareza. Aquele mar desperto a me sequestrar.

Antes de dormir eu estava mesmo me sentindo com vontades de invocá-lo e tê-lo assim, mais de perto, mas não tive coragem. Na verdade, eu amava o mar pois sabia como era ser de uma finitude infindável e sabia como era navegar em si mesmo. Eu e o mar somos caminhos e somos ancoradouro. Profundezas e praia.

Mas naquele dia, ontem mesmo, quando fui surrupiada, os meus pés estavam tão fincados no chão que eu adormeci. E tive sonhos estranhos: de pêssegos podres, de colares de peixes, de pessoas distantes. Meu coração se afundou dentro de mim, todo esquisito, foi buscar algum consolo no meu fígado, se descolou das artérias e foi parar no meu pé.

Foi quando senti que meus pés estavam pulsando, foi quando senti que estava plantada na terra. O mar veio me visitar e me lembrar de quantos tons somos coloridos e de quantas espumas peroladas são feitos nossos risos.

Ressurge então o início da história, do mar na janela da minha outra casa e eu ilhando, oceânica.
O mar foi me resgatar do solo firme em que eu me afogava, pois que eu morro de estar seca. A sequidão me traz pavores intensos. Eu sou marítima.

Era mesmo de noite e a água do mar estava bem gelada, os pêlos do meu corpo se eriçaram de um prazer meio frio. Oscilando estre a consciência e o delírio, eu fui sendo boiada pelas escadas, até que estava no terraço daquela minha outra casa. Passei pela porta aberta pela correnteza. Fiquei na altura do teto, o mar escoava por entre as grades, mas não caia no chão da rua. O mar flutuava. Pensei que ficaria retida. Aprendi uma coisa: na retidão é que se apresenta o que há de extraordinário. O mar me engoliu todinha e eu virei liquefeita. Ele prendeu minhas narinas e me deu golinhos de ar. Bebi ar pela boca do mar.

Já na rua, a flutuação do mar me aguardava, senti um questionamento: em que praia desembocaremos? Falei com a boca cheia de bolhas.
Praia dos Anjos ou Praia Grande?

O mar fez carinho nos meus cabelos e disse:
Vamos subir o Pontal do Atalaia, vamos para o mar aberto.

Quem já foi lá naquela outra casa, sabe o que o Morro é bem de frente e que o mar fica bem atrás dele. Casa-morro-mar. A partir daí, foi uma morrência relativamente rápida e num piscar de olhos eu já estava desaguando. O mar estava muito carinhoso e solidário. Sempre me chamava de peixinho. A sensação de alívio perpétuo me inundava.

Desde ontem vivo no mar. E não consigo entender como fui nascer tão longe da minha pátria.
Ainda bem que voltei. Mar adentro.
As janelas devem estar sempre abertas.

25.10.09

Repetição

Vamos fazer poesias modestas
Vamos brincar de cantar
Vamos cantar de fazer riso
Vociferar. Vociferar.
Arrastar a tristeza para longe
E ali fincar o amor


Vamos pular de alegria
Vamos dançar de rodar
Vamos correr para o alto
Movimentar. Movimentar.
Até chegar o amor


Vamos olhar para cima
Vamos lutar para vencer
Vamos falar com estrelas
Endoidecer. Endoidecer.

11.10.09

Enlace

Outro dia me falaram de amor
e eu, abobalhada, fiquei sorvendo

Fui num casamento de almas.
Ah, não se pode imaginar a densidade do véu,
o brilho do branco que se arrasta em cauda.
Noiva deve ser feita de nuvem.

Aqueles passos marcados,
é ela a própria música.

Invade a sagrada igreja com a pretensão de selar o infinito
com a coragem de um sorriso trêmulo

faz brilhar o colorido
faz brilhar
o apagado das coisas:
reluzir

o padre disse
"vocês prometem amor eterno e fidelidade perene?"

todos na igreja gritaram
"sim"

nós cremos
cremos nas escrituras
em deus trino
em jesus vivo
no amor de adão e eva

invocamos que o amor seja verdadeiro
e sobeje em nossos corações
e se case em nossas vidas

imploramos
para que fiquemos impunes
por dar-se em amor

junção
esta

como um fio indestrutível de esperança

5.10.09

Curso de poesia

Compareci a uma oficina de poesia.

Os poetas começaram a pegar penas e vestir gravata borboleta. Eu estava lá de aluna ouvinte, por isso me vendaram os olhos e taparam minha boca com fita adesiva. Cheirar podia. A sala tinha cheiro de perfume de mulher bonita. Mas daquela mulher que faz comida gostosa, que come manga sentada no portão, que tem sorriso branco e tranquilo. Aquele cheiro era tão gostoso.

Na oficina todos tinham olhos coloridos. Com duas ou mais cores. Era requisito básico. Eu mesma, para entrar, tive que arregalar bem os olhos e me fazer de vesga (para eles conseguirem ver os cantinhos da minha íris).

Aqueles poetas trabalhavam muitíssimo. Uns ficavam horas olhando para um passarinho, outros concentrados em seu amor platônico. O mais incrível era quando nascia uma poesia em voz alta: eles se levantavam de súbito em reverência à Inspiração. Eles achavam que a Inspiração vinha do Deus, então se punham de pé, como que em louvor.

Há casos de pessoas que escreveram um só verso em quarenta anos, mas todos os dias se erguiam eretos em reverência, pois sempre se sentiam poemando. Pois sempre se sentiam em Deus.

Era comum que eles contassem piadas, era comum que eles se abraçassem chorando. Eu achei esquisito que usassem bermudas e gravatas. Mas me explicaram que era apenas uma questão de estilo e que já houve épocas que eles usassem blusões floridos ou ternos.

Depois de acabada a oficina, perguntei como fazia para me inscrever e ser perene com eles, no que um ancião me respondeu:
- Para ser poeta devemos estar em todos os tempos. Escrever para o sempre. É proibido viver em futuro do nosso passado. Devemos abandonar nossas glórias e vergonhas, devemos nos despir. Inventar. Delirar. Saborear. E quando se der do poema brotar quente em nossas mãos, levantar-se submisso.

Perguntei porque eles não se prostravam, se não seria mais adequado do que ficar de pé, mas um jovem poeta disse:
- Menina, quando ficamos de pé diante de Deus, imenso como ele é atestamos: somos pequenos, nosso corpo é miúdo, nossa alma restrita. E Deus gigante nos beija a face com amor.

Um senhor disse:
- Cada poesia que goteja no mundo é o amor de Deus que transbordou de si mesmo.

Apressada, eu falei para eles:
- Quero ser poeta.

E assim me responderam:
- Então, coloque-se de pé, eis que agora você se nasceu poesia.

26.9.09

Neruda

Mariposa é borboleta
Caracol é lar
Onda tem orelha
Chuva se desnuda

Com poesia
tudo se suprime do nada
e chupamos o doce da vida
vendo o leque de crepúsculos
comendo estrelas
lambendo ternura

O amor é
a invenção mais real
de se parir

22.9.09

Pavão Pavãozinho

Vi um pavão, todo cheio de penas, lustroso, exibicionista, maquiavélico, mal intencionado mesmo. Não venha me dizer que faz parte da sedução e que é em busca de um grande amor que ele se abre colorido. Nada disso. Pavão de rabo de leque quer mesmo é aprisionar a todos pelos olhos. Nunca vi plano tão cruel: demonstrar-se inenarrável. Pois que assim, não há como prevenir ninguém. Por mais que anúncios fossem feitos, explicações extensas e vigorosamente científicas fossem proclamadas.

Um encanto, não sei. Mas vi duas crianças tropeçarem ao vê-lo, uma outra deixou o pirulito cair das mãos, parece que a medida que ele se apresentava, a mão da menina ia afrouxando, como que impotente e arregalada.

Eu falo do que tenho visto. E vi um homem chorar e secar as lágrimas com o jornal, o pessoal que passava teve que segurá-lo, porque ele queria se abraçar no animal pavão. Um escândalo absoluto, começou a juntar gente, policiais foram chamados, mas adivinhe? Exatamente, todos sucumbiam.

Os guardas pegaram seus cassetetes e fizeram um monumento para O Pãvãozão. Naquela confusão alguém começou a reclamar que a obra de arte estava atrapalhando a visão e deu um chute. Então, foi uma montanha de cassetetes golpeando todo mundo na queda. Terrível. Obviamente, uma ambulância foi chamada, chegou com sirenes, luzes vermelhas piscando (aliás, quero ressaltar que era um carro belíssimo). Alarmados, a equipe médica se colocou a postos: talas, injeções, esparadrapo. Havia uma quantidade impressionante de povidine. Ao se aproximarem dos feridos, viram que eles balbuciavam palavras como: plumas, lindo, quero. E apontavam, apontavam e esticavam as mãos em uma direção, como que tentando puxar algo. Já meio amedrontados, os ambulantes que cuidavam dos enfermos olharam: viram!

A arruaça se instalou. Algumas injeções ficaram ali, penduradas no bumbum do paciente. Coitados. Mas não teve para ninguém, o motorista da ambulância, quando percebeu o que acontecia, engatou a primeira e foi na frente de todo mundo para ver o ditoso pavone. Naquele afã, acabou atropelando quatro lagartixas que transitavam pelo local.

E aí se dá o perecimento da estória, já que o pavão era amigo das bichinhas, logo que viu seus corpos estraçalhados, ficou mole, murchou a cauda e foi tristonho andar na grama.

13.9.09

Descumprição

Sérgio era homem de bem.
Tinha um cabelo assim
meio
colado


na
cabeça


e face muito
viva.
Sérgio era gente de paz.


Plantava Odete no peito

e

Odete
tinha jeito de quem


Rumores diziam:
Sérgio e Odete tinham
olhos

de quem

se ama


clandestinamente
mal entendiados
semsaberemmuito

como

Sérgio
quem?
Odete
como?

num poema confuso
leram
releram
para no final
desentenderem


Sérgio tinha jeito de bem
Odete era gente de quem?

9.9.09

Iô-iô

Quem me dera, que coisa boa seria ter a vida de iô(iô), ficar indo e vindo passeando numa cordinha de barbante, ter sempre uma mão me esperando para me rolar de novo.

E caso eu virasse de mal jeito, ficasse só a rodar um tempinho baratinado, mas tão logo me vissem fora do eixo, me enrolassem, me arrumassem e me soltassem.

Seria bom, fariam esculturas com meu corpo ioioante. Seria bom: eu seria tratada com destreza.

Seria bom esse balançar de cadeira bamba.

Na vida o que se quer mesmo é ter quem lance e ter quem puxe. Se me fosse dado um ioioador competente e aprumado, quem sabe eu não acenderia luzes ou emanasse algum tipo de som. Daqueles sons especiais que testificam excelentes resultados.

Se eu, iô-iô, fosse feita objeto pessoal e guardado com cuidado no bolso. Se eu, iô-iô, fosse artigo de passa-monotonia ou libera-tensão-grave. Se eu fosse desse tipo de gênero, seria espécie divina. E assim, ioioandaria pelo mundo feliz e congratulada de emanar de Deus.

Seria como um cachimbo que estimula graciosos pensamentos dos velhos. Ou como uma escova macia que desembaraça o cabelo das mulheres antigas. Ioiozaria tranquila a vida de todos.

Iô iô : iá iá. Canseira gostosa de partir sem distanciar-se tanto.

2.9.09

Pipoca

Era uma vez uma menina que se chamava Dona-quer-saber. Dona-quer-saber é muito bonitinha, tem o cabelo bem enrolado, daqueles que sugerem: tôim e nós, bobos, louvamos: nhôim. Tôim nhôim nhôim e o cabelo dela vai fazendo.



A menina Dona andava meio engraçado, sabe? Parece que ela dava um jeitinho de levitar, de tão macios que eram seus passos, mal deixava pegadas. Você não imagina como eram os olhinhos da garota! Eles eram redondos e enooooooooormes, de uma cor meio verde meio mel. Uma delícia.



A senhorita Dona dona, bem queria saber de uma coisa - e nisso eu queria que você me ajudasse, caso tivesse algum palpite. Ouça bem a seguinte estória:



A dona dona, dona, dona. Então, a senhoritazinha estava querendo descobrir de quem Mário gostava e ficava quebrando a cabeça, dia e noite, noite, tarde e madrugada. Pensando, pensando.

"De quem Mário gosta?"



Talvez você vá logo dizendo apressado: "Mas que fofoqueira!". Não é nada disso, é porque a mocinha não era uma boa entendedora de corações e ficava toda confusa. Na verdade, Quer-saber queria descobrir-se objeto do amor de Mário. Porque já estava decidida de que se Mário gostasse dela, ela também gostaria dele.



Só que nada, nem uma pistazinha. Coitadinha dela, pensava no Mário até quando escovava dentes, e nada. Não conseguia descobrir. Perguntar a ele? Não!



Dona-quer-amor tinha duas opções:

1. Mário estava apaixonado por uma rapariga qualquer, que ela nem conhecia e provavelmente era um banguela cheia de perebas na cara.



2. Ele estava loucamente apaixonado por ela, só que ele não conseguia dizer isso, pois temia que ela não o amasse. Só que não sabia que ela tinha uma pré-disposição para amá-lo muito, desde que o viu. Só que não podia. Só que sem saber disso ele ficou quieto. Só que esse silêncio e esse tempo de quietude só fez tudo ficar bagunçado nas vidas. Só que tudo ia se resolver.



Não pensou em mais nenhum caminho possível, descartou logo as suposições que envolviam alienígenas.



Ai ai. Carrapato não tem pai. Olha, ninguém sabe o que passa por dentro dos olhos dos outros. Vai ver a menina era a flor mais colorida de Mário. Vai ver ele guardou em segredo esse imenso amor. Vai ver, ah, vai ver ele olha pro mar e lembra dela. Recita poemas pensando em seus cachinhos. Vai ver eles serão felizes para sempre.



Dona-quer-saber, quem saberia lhe responder?

Será o tempo?



Eu aposto minhas meias vermelhas que não, que isso chegará por boca mesmo, boca de gente. Com notícias de campo, da donzela banguela ou da Doninha habitante do peito de Mário.



Era isso o que tinha pra contar. Agora que já terminei de falar os fatos e relatos, vou para minha sugestão de final.



Dona-flor-que-Mário-quer em uma dia de verão com a lua bem cintilante. Digo dia, mas já era de noite (achei melhor explicar os detalhes). Dona-etc-etc, encontra-se com Mário, sem querer-querendo muito. Resumindo: A garota saiu de noite pra bater perna e paf! deu de cara com o dito cujo.



Prepare-se, é romântico.



Olha, aí. Mário olhou para a Quero-quero e ficou deslumbrado e nem esperou ela piscar ou coçar bochechas, por exemplo, não. Ele foi logo olhando bem dentro do globo ocular dela e dizendo: “ó, criatura lindorosa, eu sou caidinho por você, não sei como não percebeu antes”. A Dona-quer exclamou: “ih, criatura divina, eu sou distraída mesmo, mas adorei saber dessa novidade”.



E assim, com a maestria celestial de corações transbordantes, comeram pipoca e deram as mãos. As bocas, essas coisas de namorico, ninguém precisa ficar explicando.



Fim!

29.8.09

Lorota boa

Recebi uma notícia que dizia assim: estacione-se, pois que é hora de ver as cores da aurora. Foi com um grito reprimido de alegria que aprontei meu coração.

Pus uma delicada blusa de renda com botões de pérola, prendi meu cabelo com grampos dourados. Fiz as maçãs do meu rosto mais vermelhas, pintei meus olhos cuidadosamente. E fiquei feito flor desabrochada e suave.
Recebia os ventos, as brisas e meu perfume decolava.
Ao andar, a grama se prostrava diante dos meus pés e eu flutuava.

Em suspenso e com uma sensação amorfa de esperança, fico assim, fincada na vontade dessa idéia.

27.8.09

Gabinete

A situação é de perplexidade e gozo sem fim.
É um abraço daqueles macios que transmitem a textura de um rosto de aconchego.
Um certa bochecha avermelhada, rubra, ornamentada por uma face dócil e alva.

A perplexidade me cansa a alma e caminho com os pés pesados de tanto chão. Parece que, por algum motivo, as solas se apegaram ao centro da terra e meus ombros são sugados para baixo, de maneira que meu tronco é comprimido e minha mente se desfaz em agonia.

A perplexidade me regenera, com uma serenidade quase cruel. Depois que se leva o susto, é tendência humana aliviar-se: pela sensação forte e abrupta não perdurar para sempre. Aquele estraçalhar atônito não ser infinito.

E é perplexa e exaurida que puxo um fio de esperança, um certo fio de ouro que ornamenta meus cabelos, corpo e vestido. E assim vou tecendo com esse fio imenso...vou tecendo num linho branco, que se movimenta e dança em mim, que se prende e me cobre lindamente.
Como uma princesa resoluta, limpa e descansada, fecho os olhos embebidos em cílios sonhadores. Cotidiana mesmo, esbanjo acontecimentos fantásticos em um mundo de puro prazer.

A perplexidade me levou para caminhos extremos.

É chegado um bom lugar.

8.8.09

Que é o amor, Dorinha?

É uma espécie de moer de ventos, não acha?

Sim, penso que é como se os pulsos de transportassem mutuamente e ficássemos rarefeitos.

É isso o amor, Dorinha?

Não sei Arlindo, às vezes percebo que o amor é como o teto visto do chão.

E como é?

Arlindo. Do chão vemos quão distantes estão os tetos. O teto para os que se deitam é como a parte de dentro do cume. É o interior do ponto mais alto. O amor é isso, meu bem, é ver de dentro nossas alturas.

E o que se vê de lá?

Sempre se vê o que os olhos mostrarem. Antes de dormir, no silêncio da casa morta, me arrumo no chão, como quem é macia para as pedras e não se arranha em nada que risque. E assim, maleável e morna, rodo meu corpo, barriga apontada para o céu, olhos na parede de cima. O amor, Arlindo, é a parede que nos cobre.

Nos cobre da chuva e das estrelas.

Exatamente, é pela mesma proteção que abrimos mão de brilhos dos universos.

E vale a pena, Dorinha?

Meu querido Arlindo, se não são as estrelas do peito as que reluzem mais e os passos que nos conduzem para o abismo aqueles em que há mais vida. A vida é um puxar de cordas: puxamos profundezas, nos suspendemos a nós mesmos.

O que há de ser de nós, Dorinha? Temos um amor tão forte que ultrapassa nossas realidades.

O que há de ser de nós, Arlindo? Somos tão felizes que sobejaremos eternamente.

27.7.09

Conto do perdão burro

Era uma vez uma cidade real, onde muitos se conheciam e outros tantos se indiferenciavam. Pepita vivia na cidade realeza com modesta vivência, era uma jovem pálida e quieta.

Entretanto, havia algo em Pepita de desdizia sua existência, pois que se a menina se movia, tragava toda a vida para perto de si e se sorrisse, as rosas desabrochavam de prazer. Pepita era repugnante e singela, uma dessas criaturas místicas que evitamos nos apegar.

Por sua forma de balançar mundos, suave e melodicamente, Pepita era pessoa notável. Conhecida por sua bondade, Pepita se ia, repetitiva.

Até que um dia um mal sobreveio. A jovem ficou tão triste e tão pálida como sempre foi. Só que agora, sem mais contrapontos e contrapassos. O mal machucou Pepita e ela ficou doente, feito planta murcha no inverno.

Ela
tentava

respirar

mas não conseguia. E por solidão e desespero só, chorava.

Ela vivia naqueles tempos medievais e frios e usava uma touca branca que cobria seus cabelos. Usava vestido cheio, com avental por cima e sujo de carvão.
E assim, ela chorava, vestida bem dela mesma. Em tempos remotos, de calabouços e princesas.

Alguns passarinhos observavam a mocinha, tristonhando por ela. Mas gente de humano, apenas uma apareceu. Chamava-se Fine e era mulher pequena, magra e aguda. Fine trouxe pedaços de cores, trouxe pedaços de terra, trouxe pedaços do favorito. E Pepita se apegou a Fine, criando para ela regra de exceção.

Depois.

Fine foi dizendo para Pepita que não esbravejasse contra os abandonantes, pois que queriam ter sido chamuscados pelo fogo que consumia Pepita, mas que não deu, por vontade não foi. Por vontade tinham sido tão trucidados quanto a jovem. Por desejo eram próximos e por desejo, confiáveis. Que perdoasse, a Pepita, a falta deles.

Pepita viu-se boba tola, e como quem resolutamente mete a mão no piano e toca uma nova canção, cancionou. E todos dançaram e todos celebraram. Até cansarem, até adormecerem.

E Pepita então parou, para se unir a eles e descansar. Porém, enquanto caminhava para o aconchego, viu o mal etiquetado, no bolso de cada um deles.

Deu, riso, música e paz para quem quase lhe comeu os olhos. Sua esperança foi estrangulada. A jovem pegou-se toda ela, abandonou as roupas reais e descambou-se para o reino da fantasia.

23.7.09

ração: parte de tudo

“Mas que até razoável tem limite?”. “Eita!”. “Mas se é razoável pronto está sempre.”
Como narrador fiel, transmitirei o pensamento bruto, daquilo que ela dialogava em seu monólogo: “se razoável é coisa boa e equilibrada não deveria de ter limite. e se me dizem que nada demais é bom, digo logo: hipócrita. ser feliz ilimitadamente é crueldade? deve por algum acaso ser evitado? certo que não. parando de despistar, engatinho para o bucho desse raciocínio. a razão precisa de um limite e não o razoável. isso que cabe na compreensão. razoável é a razão fazendo ponderação, se esforçando ao máximo para minimizar equívocos. razoável é fugidor do erro ou enfrentante, se preferir. na medida que:
ou foge carregando o que é importante, faz uma trouxa nas costas e se afasta correndo para que o deslize não tropece no cidadão protegido ou saca uma espada e lança a trouxa para trás de si, impedindo o ferimento do protegido cidadão. fugido-corrido ou parado-espadado é situação de valentia. razoável é questão corajosa e a razão fica boba boba por ter esse atributo. só que o erro sempre beija a face dos humanos. o que demonstra a simplicidade da ruína dos conceitos. a verdade vitoriana é que em alguns momentos o erro será uma etapa e não se deve abortar o processo por conta disso. e se aprende a desequivocar-se. é normal. então é que o cidadão protegido vitoriano é aquele que pega no ombro do razoável, inclina a fronte para dizer: quero tentar, razão. e finca limites do suposto razoável. assim cabe na imaginação e se entende melhor.”

Pedaço de um todo

O que Arlindo bem sabia era que Dorinha era a paixão da vida pequena dele. Era a pureza dele e ele que não era mau moço que era tipo de gente desejante ável por muitas. Ele parou com o mundo e tudo e ficou perambulando pela vida todo cheio de ramos de esperança, sem saber onde plantar ele sabia era que Dorinha que não o queria e sofria por isso.
Não entendia mais porque se lavavam roupas ou porque persistiam as meias. Se não podia ter Dorinha. Se não podia pegar suas mãos envolver seu rosto com vocábulos de carícias. Ele compôs canções esqueceu de ser homem prático e vivia agora com poemas os escrevia nos muros da sua cidadela. Nos campos o que via era o serenar do vasto e isso dava um cansaço tal que se sentava no meio do trânsito de seus sentimentos. Sentia-se frágil e vulnerável. Aquela mulher tão vivente lhe arregaçara a vida, alargara suas mangas e agora estava frouxo de si mesmo.

18.7.09

Dorinha (vem)

A vida, Dorinha

Senti necessário um narrador em terceira pessoa. Alguém para acompanhá-la nessa saga, nessa tristezinha que você está. E como você, Dorinha, começou falando sobre conceitos, preceitos e conclusões, faço o mesmo para não lhe surrupiar o estilo. Venha comigo Dorinha, que hei de dar-lhe um final feliz.

Dorinha pensava muito e sempre que pensava inventava umas firulas para sua existência. Dorinha não parava de entender o que era vida e, nessa etapa, percebeu o quão importante foi refletir sobre os tempos verbais (presente, passado e futuro). Digo tempos verbais, porque, ainda que não percebesse, Dorinha era extremamente gramatical. Pensava em letras e se apegava a um pedaço de papel mais do que a ouro e a diamantes. Pensando, pensava Dorinha que letras são jóias que acabam morando dentro de nós.

Por isso, ao pensar nos tempos -ditos verbais- concluiu quase que espontaneamente o que vem a ser a vida. A vida, ela dizia em sua meditação, é o que acontece entre o futuro e o passado. A vida não é o agora, porque agora é instantâneo. A vida é uma linha contínua de agoras, um período, um pedaço de tempo fluido que transita entre o mistério do que será e o conhecimento do que já foi. Isso é a vida.

Dorinha sentiu-se feliz. Pois, pela primeira vez, sentiu-se livre do tempo. Agarrou-se a vida sem nomenclaturas. Um alegria tão calma, ficou mansa e adormeceu. A Dorinha, nossa mosquinha.

Isadora sonhou depois de muitas e muitas noites sem dormir. E isso lhe deu um prazer tão cru, que interrompia-se no próprio sonho na afobação do que acontecia. Era coisa de estória simples, daquelas que continuamos em um filme eterno e esquisito. Fato é que sonhava e era o bastante, pelo menos por hora.

Foi ligeiramente desagradável quando surgiu um pretendente antigo, ali, no meio da cena. O problema era que o tal insistia em participar, embora a menina o afastasse. Ele vinha cheio de olhos e de face. Dorinha se lembrou do ritmo dele, do tipo de movimento que ele tinha. Seu nariz era particularmente bonito. Assim, acabou-se a festa: a realidade chegou rendendo a todos e tiveram que entregar a fantasia. Acordou-se querendo dormir.

A garota - chamo assim porque já sou narrador mais antigo-, a garota percebeu que nem em mundos inventados conseguia a paz de um amor tranquilo. Ficou enraivecida, como era de se esperar. Fazia um frio ensolarado nesse dia, pelo que pegou um agasalho modesto e saiu-se para passear. Escolheu um parque daqueles com árvores quietas e abundantes. Sentou no banco e inutilmente teve esperança. Depois de alguns minutos já estava como um ramo que quebra e fica pendurado ao caule, como se vivo estivesse, morto que está. Vivia assim, Isadora.

Daqui para frente chamarei de Isadora, por questão de respeito puro. Aquela linda criatura feita de gente. Isadora estava cheia de areia por todos os lados, o deserto lhe cobriu e ela serviu de monte, de trecho igual. Coitada, tão alheia a ela mesma, tão só de si.

A Isadora queria esparramar, mas virou-se gota de novo. O final feliz que lhe proporciono é o que os velhos e sábios dariam. Achar nesse agora esticado que é a vida algo que não a compensação da felicidade. Como narrador onipotente, instauro em Isadora um esquecimento total de seus sonhos impronunciáveis.

Isadora notou-se diferente. Havia uma leveza tão particular tão boa. Alívio. E se deu conta que seus sonhos haviam sumido. Sem desespero. Alívio. Para mostrar que alguns ideais devem ser abandonados, Isadora vestiu-se de flor e desabrochou. Silente, intrinsecamente.

O narrador e a Isadora concluíram que soluções das mais diversas são possíveis. Conceberam que nem sempre o que dói é o pior. Que há sonhos podres e é preciso limpar-se.

15.7.09

Dorinha

Outro dia estive pensando: que é o futuro senão pingo caído no chão? Pingo de chuva morto no chão, vem do céu cai na terra, vira lama. Futuro é isso, não se engane. Em algum lugar o ‘agora’ se chama ‘tempo real’, e todos querem. O tempo real. E o que é o passado então? Tempo ficto. Deve de ser. Deve de ser. E com caraminholas na cabeça, não me sai dos pensamentos que o presente para mim é o mais utópico, é sensacionalismo, fantástico em demasia. Não gosto de viver de futuro, porque esse inventar me cansa, são tantos caminhos e sóis. Gosto de beber do passado, rememorado e findo. Refaço notícias gordas e frescas. É o que gosto. O passado me alimenta e se projeta em meus olhos, vejo tudo medieval, meus vestidos se alongam e rendas brotam em meu colo. Gosto dessa nostalgia inventada, de fazer do mesmo fato milhões de estórias. Reler e reler, sem se prender ao verdadeiro.

Melhor que o futuro, amigo do agora, cheio de surpresas nefastas, impregnado de acontecimentos podres. Não tenho fé no futuro, nem esperança no agora, o que me encanta é o passado. Arrasto-me sobre ele e absorvo seu cheiro de flor ida. Desde muito vivo sepultada, morreram e com eles me faleci.

Estava caminhando nas minhas próprias casas e senti um pingo de chuva cair em mim. Pode isso? A chuva perseguir os reclusos? Senti-me intimidada pelos céus, lotados de nuvens molhadas. Vez por outra, me pego andando pela rua e sendo gotejada, pingo único só para mim, demonstrativo de que não existem tetos: somente céus e infernos.

Isadora é nome meu. Nome de dor poderosa. O mundo sente-sabe quando nasce uma fagulha de destroço, nasci-me, desde pequena nasço sempre. Já fui de todo jeito, já comi todo tipo de comida. Meus olhos que continuam mesmando e meu cabelo que continua em fios. De resto sou outra mulher. Dorinha que me chamam e eu atendo. Não sei porque sabem meu nome, quisera eu que se emudecessem ou que meus ouvidos se fechassem. Seria meu descanso, meu milagre.

Sempre esse abandono velado. Toda vez em prontidão, esperando quem me espanque. Dorinha, dizem, você é uma flor amarela pequena e pura. Dorinha, exalam, seu cheiro é bom e sua pele macia. Dorinha, pedem, deixe de estar e venha para eu ter. Dorinha, mentem, nada de mal lhe acontecerá.

Usam o diminutivo para aumentar minha vontade, vou-me rasteirinha, regando-me toda e inventando canções de amor. Trabalho por horas a fio, engulo arco-íris sem fim. Observo o dourado da palha. Recito minha crença antiga: existe o amor, existe amém.

Dorinha, explicam, tenha paciência comigo. Dorinha, calam. Dorinha, massageiam, você é mais bela que o som. Dorinha, concluem, vá embora tenho medo de amar. Abrupta socorro-me lentamente, pego minha crença mendiga, pedaço de papel desvantajoso, a guardo dentro da blusa, colada no peito, no quente do corpo. Com esperanças de que se transforme em viva com o calor do que me falta.

Por isso me apego ao passado, me aquietam os desastres já conhecidos, aquilo que já foi mastigado. Quando futuro, se rasgam os emblemas, fico sem escudos ou origens. Dorinha é que me falam, sou diminutivo de sofrimento simples. Pereço boba como uma mosca, mas brilho como uma estrela.

Esse é o meu lamurio, enfim, confundo a todos com uma realeza típica e inacreditável. De repente viro castelo, com flechas, armaduras, estalagens. Sem entender porque me fazem assim. Não há batalhas, grito afônica, sou imponente: mas também sou refúgio. A arma que fere também serve para defender. O muro que separa também ajuda a permanecer unido. A porta que fecha, encerra coisas valiosas. Nessa hora, meu nome vem completo de Isadora e se esquecem que sou mais borboleta do que princesa, vão destroçando tudo com demonstrações extraordinárias. Penso que sou Dorinha só para o que dói, para carinho miúdo e bom sou Isadora a deusa. Mosca-estrela, como sempre se diz.

Seguro firme minha crença imunda, devoro-a: fico grávida do que nunca será.
existe o amor, existe amém.

11.7.09

Vexame

Sinto uma vergonha enorme uma vergonha existencial e medíocre um desejo insano
de apontar
para meus agressores e gritar: v o c ê f a l h o u c o m i g o.

Sair por aí distribuindo panos rasgados. Retalhos da minha carne.

Se me perguntarem: Dói?
Respondo: Dilacera
E se me perguntarem: fica?
Respondo: enraizei-me

E quando me machucarem, urrarei
e se me magoarem, pranteio na hora

não serei mais contida
nunca mais serei amena

de agora em diante não penteio mais o cabelo
e o meu hálito será o dos mortos

serei um escândalo de sinceridade
abandonarei nuvem e cavalheiros

não peço ajuda
porque não há quem socorra
não há quem pegue na mão

não existe o outro
só, existe eu

vexame
colapso

e eles dizem:
amém

9.7.09

Oposto

Conheço uma árvore que nasceu nas costas de um viaduto
Uma flor que mora na barriga de um prédio
Uma pessoa que se estabelece no lixo
Quatro peixes que pairam num papel

Sei de olhos que engoliram uma boca
mãos que andaram nos pés
línguas que conduziram ventanias

Loucura espetada no Globo
Incoerência salpicada em todos

Lugares vazios
Onde não caiba mais nada

Igrejas sem Deus
Vida mortificante
Como?
Como. Me lambuzo e fico cheia de um mundo eternamente impúbere
nunca pronto
Gero esperanças cuidadosas
feito riso de gengiva
aberto e rosa

4.7.09

Afta II

Minha doença está em processo de morte

o que me encolhia a boca
some-se

é o falecimento solene
do ácido

fiz guerra:
tomei água
tomei banho
colírio
creme rinse colorama

boche chei
até que os nós se despentearam
e vi o sumiço do meu mal
atualmente
vivo
sarada

bucal
o básico
salva sempre

agora

sou preparada para
furúnculos
frieiras
perda de unhas
inflamações diversas

o fim
o sepultar da afta passada

3.7.09

Afta

estou com uma afta na boca
bem no canto direito
enorme e dolorida
só dói quando eu

sorrio

rio

gargalho

para enfrentar essa terrível enfermidade
fiz voto de lamúrio
falo só de lábios miúdos
e não os deixo descortinar

até que eu sare
t enho
boca de t riste
e olhos t ranquilos
de felic
idade

1.7.09

Benesses do rei

Adroaldo é tão querido
Mas vamos segredar suas benesses
Matá-lo de felicidade
Enchê-lo de alegria
Plano mais vil e malévolo
amar para o sorriso do outro
Vontade de rodar o mundo, a roda, a perna
Rodar e gerar fantasia de outros mundos
Inventar reinos eternos. Personagens bondosos
Glórias vindouras
Rodar até a realidade cair e só restar a boa utopia
O amor é utopia que se pega, que se cheira,
que se ama. Que se basta, que se roda, que ele
va a estatura Dói a nuca, roda o peito
Fantasia, outro mundo. Que saudade,
dolorida, ai que vida! Mas que morte, que
loucura, fantasia: olha o rei. Olha o rio!
Ventania. Olha a luz. Que paz d o u r a d a
Ondas ao céu, roda no alto
Gira meu leito, gira o braço, maçaneta
Que lei é esta?
Roda de novo e vem pra perto
Vem pra perto, roda comigo, para sempre.
Fantasia

30.6.09

Lamparinas musculosas

Venha, experimente e pense no mais belo do mundo, ainda assim.
Venha, experimente e coma o mais gostoso que há, ainda assim.
Venha, experimente e ria do mais engraçado que existe, ainda assim.

Não saberia o quão esplêndido ele é. Ê! Esse rapaz tem olhos de candura. Ah! Voz de doce de leite. Mas. Mãos macias como farinha de trigo.
É informal, esse menino-enorme.
Sua risada desconstrói muralhas e suas piadas inventadas gargalham.

Ele é um rodopio de criança. Como a delícia de biscoito recheado, mais lindo do que o gato da praia.

Com óculos ou sem olhos, ele vê
Com dentes ou sem boca, ele ri
Com voz ou mudez, me conta

Ele é um eterno ponderar, inacreditável des-saber.
Escreve colorido na gente, dignifica os olhos de todos.
E sem parar nem pôr, fecho o ensaio com a seguinte resenha: ele é todo músculo, força e poder.

Bem que é. Sei que sim.
Meu. Irmão.

23.6.09

Percurso

O tempo suga para trás, tenta nos puxar.
A inércia é uma sensação de volta.
Quando percorremos, é um desprender, sacolejar, um livrar de braços. E nos desviamos e algo nos retém e nos lançamos totalmente para frente, tentando cortar os elásticos que nos prendem ao passado.
E nos despimos, fincamos as unhas no solo e nos arrastamos nus metro a metro, para seguir em frente. É uma queda horizontal que nos leva ao que já foi. Como um grito no meio do silêncio desde sempre. Brado. Guturalmente.
Espanto fantasmas, demônios, fracassos.
Proclamo ao Deus Altíssimo, vou por entre árvores, rente ao chão, colado no peito.
Sem distância de tudo. Rastejo-me a diante. Rasgando o impossível.
Dentes trincados, força, suor. Movimento lento e majestoso. Sou eu girando planetas.
Piso profundo e com a resolução de um mito.
Estabeço-me na realidade, digo: existo!
Até que a resistência fica mais fraca que eu. Venço, ofegante, boca entreaberta, corpo firme.
Sou quem chegou. Quem enfrentou a escuridão, lanhei o inatingível.
Sou eu, quem escreve e que hoje carrega medalhas por vencer mortes e pesares.
Meu caminho é prosseguir.

20.6.09

Caso de sumida

Há um boato, já bem comprovado, da desaparição de uma mulher inteira. Seu nome já indica mau presságio: Sumida. O nome.

Apalpando o começo disso tudo, descobri:

Sumida era moça em vias de se formar mulher. Tinha idade de gente jovem. Tinha cabelo grande, olho aberto, mãos enormes. Era também toda castanha, menos a pele, porque se alvoreceu desde muito e hoje vive como ontem. Branca. Queria ser castanha toda, até a pele (menos os dentes).

Sumida era pessoa de coração e veias. Sente e transmite. Tum Tum. Sente e transmite.

E numa quarta-feira, durante uma transfusão de sangue, descobriu que lhe faltava um cílio.
Foi como iniciou.

Eu que sou contadora sinistra, alisei as razões e descobri a causa: Mágoa.

Explico, para desafogar sua curiosidade. Toda vez que Sumida se sentida triste: Zim. Sumia-se. Mas reaparecia logo, conforme a gravidade do sentimento. Uma vez, porém, foi tão violento que quando reapareceu, faltou-lhe uma mecha de cabelo. E mecha gorda. A solução foi a dos calvos-de-um-lado-só: jogou o cabelo pro lado e ficou disfarçado. Se passasse vento, mostrava.

Houve uma época, isso já coisa íntima, houve uma época em que a garota andava meio apaixonada. Todos são sabedores que trâmites amorosos põem tudo a perigo. Sobreveio uma dúvida no coração de Sumida: "será que era amada/gostada/querida por Tudão?".


Tudão era gente fina. No entanto, gente-homem, daqueles meio trancados que que gotejam uma ou outra flor. E sem flores não há como saber de nada.

Foi um tempo de angústia, um sufoco daqueles. E de tanto sumiço, Sumida acabava desmaiando, nervosa. Por estar tão ausente.

O reboliço não acaba por aqui não. Tudão planava e Sumida sem saber se ele pousava ou percorria outros ares.

Arrumados os motivos, trombei com o fim.

Foi em dia de primavera que Tudão decidiu que tinha coração. E repleto. De amor. Por mistério ou fofoca, leu o início dessa estória e viu a precisão de flores.

Lido e instruído, foi o matador de todos os pavores de Sumida. Comprou um campo e o floresceu. Narcisos, rosas, aos milhares e de infinita beleza. Assim, pensou, já se dizia alguma coisa e o resto falou de boca mesmo.

Sumida destinatária desse amor, desapareceu inteira, hoje lhe chamam Prendinha. Tudão ficou Fluído. Retomaram o paraíso e se tornaram riacho.

É assim que foi e é assim que é.

19.6.09

Caminho

Será glorioso o caminho do mar e serão de nuvens as pontes entre os rios.
Louve-se! Ao Deus Supremo e extremoso, poderoso e exaltado seja. Que as bocas proclamem paz infinita e que respiremos Sua Luz. Deus transtorna o mal e reafirma o bem. Consome nossos medos e constrói-nos seguros. Deus de leve como pluma me faz ventaniar tranquilidade.
Mesmo quando meus olhos são fechados pela escuridão e a dor toma conta dos meus sentidos. Mesmo quando meus sonhos pendem informes e desesperançados. Mesmo com a morte de tudo o que vive em mim. Ainda há uma chama. Uma picada. Uma redenção calma e divina.
Dança suave do celeste em mim. Passos macios sobre o céu.
O justo está confiado como um filho de leão. Intrépido. Forte.

Com desastres e guerras sem fim, reina a paz infinita e glorioso e inenarrável caminho para o mar. Desde o começo e para sempre.

13.6.09

Inter

Intergaláctico
Internauta
Interpela
Interfase

Entre

Inter.agindo. Interino.
Nessa fome de Deus, que almocemos o outro. E nessa dança doce, contaminemos o próximo.

E indo nos vamos, intercambiando. Inter.cabendo.

Que façamos uma mesma prece, falando assim:

Que entre nós escorra amor
até que transbordemos todos os potes
e enchamos o mundo

Que entre nós haja tanta ternura
que nos transformemos todos em sorrisos:
sementes de paz, fagulhas de luz

E que haja tanto céu em nosso peito.
E que haja tanto Jesus em nossos olhos.
E que haja tanto suspiro de alegria.

De maneira a vermos interfaces convertidas
Interesses tranformados
Interesperança mútua.

Que deixemos Jesus ser o redentor
E a salvação ser completa
Sem pesares, nem sonecas, nem desastres

Que decididamente vejamos o Cristo brilhar
Iluminando a pobres pecadores
Nós. Eles. Ambos.

Que sejamos maioria
Mesmo que em menor número
Andemos dados às mãos
Unidos. Bonitos. Louvantes

Que todo desespero seja extirpado
E que haja enxerto:
De força e tranqüilidade

Interação tua em nós. InterDeus.
Entre nós. Entre, Deus.

17.5.09

Correspondência

Querido leitor,

Escrevo essa carta na esperança de que as letras não morram sem nascer.
Alguma vez na vida você já esteve tão perto da dor que simplesmente sentiu paz?
E de tanto pranto, secaram-se as lágrimas.
E de tanto amor, um rasgo se deu.
Falta-me a vitalidade do outro. Daquele que perece, num leito, sem ar nos pulmões.
Nessas ocasiões preparamos a fúnebre visita, última. Antes que tudo se torne póstumo e inerte.

Como se aceita que alguém partirá?
Como se canta sobre amores vindouros?
Porque a vida, minha vida, se encerra em lábios frágeis e moribundos. Daqueles que definham, daqueles que são magros. Daqueles já foram fortes e bradavam.
Hoje, caro leitor, se ponho minhas mãos sobre aquele corpo doente, o que recebo é um carinho circular. E mesmo em meio aos destroços, sinto minhas mãos envolvidas pelo enfermo que é mais bravo do que eu.

Eu morro de medo e ele morre de estar vivo. Já viveu sim, bastante, pois bem.
Agora, talvez seja o dia dos lírios findarem e da chuva cair sobre mim.
Leitor meu, lhe digo: não tenho palavras doces, nem nojentas.
Há uma despedida lenta e majestosa. Escorre pelas brechas de mim.

Se todos morrem, por que vivo?
Se todos vão, por que vim?
A minha beleza vem deles, daqueles que com cabelos brancos envelhecem ternamente.
Sepultarei minha origem. Pequena e linda.
Aquele que me deu ferramentas.

Um eco. Chamo e não há resposta.
Não vá, fique para sempre comigo.

3.5.09

Selvagem

Daqueles que comem verduras e destroçam ventres.
Daqueles que têm língua de navalha e cabeça de mel.

Malvados, cínicos do mundo!
Canastrões! Faceiros
Lindíssimas criaturas que mentem, envolvem com piadas incorretas.
Moralmente reprováveis, eticamente os louvo.
Porque são livres deles mesmos e em tudo transborda amor: em não ser sempre sendo

ainda mais

Como se voltas fossem feitas de pontos curvilíneos
Como se lençóis fossem feitos de paz.
Como se fossem de algodão as mãos. Como se a esperança se tornasse grama macia.

E é como se tudo ficasse amorfo e andasse como pato.
pés abertos, peitos esticados para o ar

Cabelo enrolado daqueles que se alisam de tédio
Olhos de quem repara em poesias ocultas, que cabem nas patas de um mosquito
Força! Gutural de uma formiga.
Balanço gostoso de viração marítima.
Daquelas que rodam a gente. Bamba bamba, danço na natureza linda.

vejo tudo ritmado
vilas, palhaços.
dentes que me mostram alegria
sorriem

perdi uns dentes. levei soco na boca
cuspi meu maxilar inteiro e nasceu uma flor carnívora
exótica, mordente

Ah, que exaltação
As palavras ficam germinando, jorrando do poço
Jogadas a metros de infinitos, de imensidão.
Umas vão tão distante que as perco indefinidamente

rodopio de sensações
cansaço de vida
terra no rosto
sou negra, marrom, sou onde se plantam

sou notas, sou arcos
sustento
sou frígida. fingidamente calma

sou máscara
imponente escritora de fantasia
mas eu acredito
respiro meus delírios, os vivo
os almejo, como
mastigo
engulo
meus mundos são digeríveis, são alimento

passo
paro
passo, paro
deito
cheiro
nevoando e, sem mais outros instrumentos, canto sozinha, mexendo os pés na minha melodia
espalhando as folhas secas
e criando pétalas

antes de me nascerem sonhos, criei por séculos e mais séculos
criei pétalas. enroladas e coloridas, escondidas dentro da minha planta.
desenhei minhas folhas como quem transporta sua vida para uma semente
como quem se projeta na espera

enrolei-me de tal modo que cresci sem perceberem. fiquei gigantesca e de noite, aumentava minha existência.
preenchi diversos planetas enquanto crescia, sem flor - sendo folha
e ninguém via que a vida me brotava

em um dia
abri
estiquei meus braços e disse:
o mundo é meu
peguei minhas flores, as arrumei em meus olhos
e disse:
perfumem meu mundo
arrumei a minha terra e disse:
nutra-me eternamente

o que vale é a paz cravada, é a vontade que escorre por entre lábios
são palavras! ditas!
Bramidos!- sussurrados

Tragam-me boas notícias.
Quem vos fala é quem vos flore.
Eu sou de pluma, sou doce, sou mansa
Sou mirante. Miragem não.
Sou criadora de pétalas. Riacho escondido.

Refresquem-se em mim, que eu vos rego com Deus.
Bons vocábulos.

24.4.09

Grude

No dia em que se morre a desgraça, há um lamúrio de tristeza. Todos os pensamentos exitam em afobar-se. Até o coração trocar seus trajes, demora. Muito tempo até que se reacendam os olhos. Acostumados com a marcha fúnebre de mortes alheias.

Ontem apunhalei meia dúzia de desesperanças. Suei, sujei-me com seus dejetos.
Olhei para o pessimismo restante, ameacei-o.
Bradei dentro do meu peito: "venha e lhe mato de alegria".

Quando morre algum sonho em mim, eu enterro. Rego e espero nascer a árvore. E assim, ainda morto, me serve de alimento.
Quando sou quem morre, espero pela minha ressurreição. Afoita, revivo, renasço.
Compactuei com Deus que seremos felizes ainda que a felicidade fuja. Não nos amofinaremos por esperar boas circunstâncias. Combinamos de navegar juntos. E é tanto céu que existe nEle, que morro de eternidade.

Assusta demais. Sorriso fácil. Gargalhadas esparramadas pelo mundo.
Quase libertino. Quase infame.
Se pactos pudessem ser quebrados. Se não tivesse sangue envolvido no negócio. Se o contrato não fosse tão vinculante. Até que eu tentaria. Me apegar ao desespero, ensaiar cenas deselegantes.

Porém, é caso perdido. É assunto encerrado: a paz grudou em mim e agora vivo embebida em bondade.

20.4.09

O conto do amor arruinado

Minhas pernas se puseram a andar por entre meus pensamentos. Subitamente percebi um caminho de dor e tristeza, segui-o. Eis que foi cheio de temor que trilhei o primeiro trecho. Depois, a idéia de que era esse o meu destino me assaltou e levou consigo todo desespero.

Agora percebo que o caminho é infinito e a linha de chegada é o lugar de onde vim.
Fico com a resolução de mudar meu passado errante, um passatempo mental de ser feliz.

Agora, mais um vez, agora conto meu conto.
Arruinado pelo amor, por certo que foi.

Imagine você os olhos onde se plantam bananeiras. Olhos cor de folha seca. Marrom-terra-folha-seca.
Imagine você que eles brilhem. Seria estarrecedor se não fosse enebriante. Talvez seja ambas as coisas. A imagem dos olhos, digo.

Os donos, os olhos, se alocaram num corpo. Corpo de Esméria. Admito que é com profundo pavor e depressão que escrevo. Não tenho saudades, só distância.
Esméria era má de tanto ser boa. Não era possível confiar nela. Boa não era, por certo. Era boa de tão má.

O mal se deu - vamos ao conto?!- quando percebi que Esméria comia esperança.

É boba a estória, só conto porque tudo aqui está perdido. É um conto fracassado.

Um dia, vi Esméria mastigando algo, algo que de doce tinha doçura. Ela mastigava o invisível e escorria riso por entre seus lábios.
Comecei a desconfiar da menina. Quem é que come uma coisa boa e finita...que faz isso: acaba com tudo de bom? Come a comida por mais que se acabe...e depois se ri?

Maldade.

Esméria comia palavras minhas, recitadas em frente ao seu nariz enquanto meus olhos fitavam sua boca. Conforme eu falava, Esméria repetia e as engolia. Depois se ria, risonha, feliz, trêmula. Escorria, escoava...rio no queixo, gotas no chão. Maldade.

Se quisesse palavras para engolir, que procurasse outro.
Foi inútil retroceder. Esméria deixou brotar o amor, engolido na terra do peito. Gerou as folhas, tronco. Os frutos.
Ela toda virou árvore. Suas pernas raízes.

Se Esméria quisesse. Maldade.
Era tão bonito ver Esméria. Sua paz tão notória.

Se quisesse, a tal da Esméria, ser feliz...que procurasse outro.

E assim que acaba o conto: Esméria morreu de saudade e eu prossegui meu caminho.

17.4.09

O Dia do Cospe Pérolas

Num mundo de monstros encantados, vi uma gaivota que cantava ao relento.
A gaivota sonhava ser peixe e o peixe sonhava ser mar. Nesse apego em sonhar ser o que não se é, os dias passavam límpidos. Dia após dia desastres impressionantes.

Nunca esquecerei do "Dia do cospe pérolas". Foi o dia em que conchas guardiãs do tesouro se enjoaram com o balanço do mar e todas vomitaram. Pérolas e mais pérolas nadando pelos sete mares. Até surpreender-se era perigoso.

Conta-se que certa tartaruga, boquiaberta com a situação, acabou engolindo três pérolas e morreu. Entaladamente preciosa. Pobre ou rica, fato é que aquele casco não será mais habitado.

A maioria ficou com nojo. Vômito de conchas, todos entoavam.

Ninguém mergulhou por aqueles dias. Não havia quem achasse aquelas dádivas.
Minto, uma pessoa mergulhou. Um pescador velho e alcóolatra. Mas não conta porque não se conta os mortos dentre os vivos. O pescador mergulhou em alto-mar. Ao abrir os olhos e ver aquela corrente de pérolas, achou graça. Pensou que estava sonhando, puxou o ar pelas narinas. Três ou quatro redondinhas lhe entraram pelo nariz. Lá se foi. Entre o sonho, embriaguez e entupimento. Morreu feliz.
Fora ele, ninguém de humano soube do fenômeno.

As conchas, desprestigiadas e vazias, se abriram e abandoram a missão de ser par. Correram, nadaram e se lançaram na beira do mar.
Uma menina chamada Alice juntou oito baldes num só dia, produziu vários colares de concha e hoje vive num luxuoso hotel com a renda.

Curioso foi o fim das pérolas: cairam num abismo e o encheram até a boca. Os peixes as tratam como pedras e elas vivem a redondilhar.
São felizes e viverão para sempre no mar. Preenchedoras de abismos e matadoras de quem estranha essa história.

Futurando

Ainda é amor pequeno
daqueles que nascem com preguiça e prudência.

Ainda é bem semente, mamão verde, mingau em pó.
Falta aquecer, borbulhar, mudar de cor e de gosto.
Falta o céu e a terra reconhecerem o ar.
Falta as estrelas furarem nuvens nubladas.
Descortinar. Desenvolver. Disseminar.

E quando as bocas forem par e os olhos quartetos. Quando o hálito for do outro.
Teremos mais alimento. Faremos banquetes de alegria e serviremos as melhores risadas.
Vai ser bom. Tênue e puro.

14.4.09

Mestre-Deus

Passeando por entre palavras ditosas, vi Deus estampado em parábolas. Rodopiei meus olhos por entre vocábulos e achei alimento e achei bondade.
Percebi Jesus-Deus e enxerguei sem ver nada. Não por ser escuro, mas porque luz demais lustra a alma e faz tremilicar. E nesse tremilique de espírito: chamado de temor, tremor; eis que meu mundo girou com um sentido a mais.
Sentido de quem dorme, mas não vacila; de quem cansa, mas não pára. Segurança de quem morre, mas ressurge. E por mais que a Cristandade ficasse perplexa, o próprio Cristo não deixou de ser aborrecido, cansado e abatido. E o próprio Jesus foi traído, rasgado e humilhado. E o próprio Emanuel se compadeceu de quem o extirpava do coração.
Deus é assim mesmo: se ira com imensa compaixão e mata o celestial para salvar-nos, profanos. Porque Deus se joga na lama e permanece majestoso e puro. Faz brilhar esperança nos desgraçados. Deus é todo cheio de páscoa e natal. Cheio de remissão e oportunidades.
Deus é um tanto extravagante.

10.4.09

Peito de frango
Olho de garça
Nariz de morcego
Cauda de troll

Comida dos vizinhos, cheiro bom. Quero comê-los.

9.4.09

Mortidão

A morte veio ter comigo. Aborrecida, mandei que tomasse conta da sua própria vida. A morte, coitada, sem saber como existir, arregalou os olhos e encolheu os ombros.

- E como? - a morte soou.
- Não sei bem. A gente vive sem saber como funciona. Uma espécie de amostra grátis por tempo indefinido.
- E se não gostar, tem como trocar? - a morte questionou.
- Tem não. Quer dizer, tem. Trocar não, mas tem como morrer.
- E só? - perguntou mortífera.
- Também é possível dar guinada.
- Como é guinada? - perguntou, perguntando a morte.
- Pintar cabelo, emagrecer. Correr, virar gostosa. Comprar roupa. Arrumar namorado careca e dizer que nunca esteve mais feliz.
- E serve para quê? - morte.
- Para os outros. Para esfregar vida na cara deles.
- E sobra algo para pessoa? - perguntou já se sabe quem.
- Contas, trabalho. Salto alto. Calo e peruca. Status!
- E status de quê?
- Status de quem vive.

A morte pensava que ninguém morria vivendo. Na verdade, ficou extasiada de felicidade, descobriu-se útil e presente na vida de tantos.
Morte amiga e cotidiana. Morte de todos os dias.

30.3.09

Pá, pá

Andando, virando mil rodas de estrelas e cânticos jubilosos.
Amor de névoas, de nuvens tão lindas
E é vento no rosto
pulo de leveza
E a gente corre, desconcerta e vive morrendo de vontade de ser
Mas ninguém sabe
Todos ignoram a vontade de transmutar-se para outro tipo de ser que possa explodir sempre que haja muito luto
E a gente luta, briga, anda por túneis, cava uma vida inteira
Faz coroa de pétalas
Nuveando
Matando nossas mortes diárias
Acreditando em amores vindouros perfeitos
Infundíveis com a tristeza
Fantasiados de delícias
Vestidos de doçura
Com voz macia e música pelos pêlos
Caminha, saltando, correndo, sorrindo por estar
E vai para um lado
joga para o outro
Balanço do som
Nublado, chuva, chuva
Medo, frio, escuro. Solidão. Vertigem
Sol, arco-íris
Beleza. Beleza
Alívio.
Tirando os agasalhos, o inverno passou, é tempo de flores
E eu vou, germinando no mundo
E eu canto
Eu luto por vidas alheias e minhas
E luto por sonhos tão puros e bons.
Sem que nada se perca
Sem que nada se esvazie. Sem que tudo me extrapole
Sem desistir de não caber no mundo
E eu ponho óculos pra ver o sol E escovo os dentes para comer pedras.
Nada se sabe.

29.3.09

Poesia

Você andou me perguntando quando iremos gritar poesias e lhe digo: Agora e para sempre! Para os oito cantos do Universo e por toda eternidade brademos com força: Cristo vive e reina em nós.
Aleluia, pois cantemos.

Alma bonita e flutuante. Deus macio e de paz bondosa.
Remissão da podridão que fomos.

Vamos cantar poesias: pouso perene de Deus em nosso peito.

16.3.09

Há porquê

Borboletas?
Sim há.
Coloridas.
Muitas delas.

Há fascínio? Sim, há.
Colorido, muito dele.

E beleza?
Sim, há.
E distâncias, muitas vezes.

Esperança.
Sim, porque.
Tantas cores em meu peito.

5.3.09

Perdoem-me os obstetras

Ninguém nasce sabendo de onde sai. Se fosse o caso, ficaríamos horrorizados.
Para disfarçar, o médico nos tira logo de lá, nos puxa de ponta cabeça, como quem diz: " esquece, esquece". Tapa na bunda para ajudar na superação. Peito com leite. Choro de mãe. E é assim que se nasce, meio que no susto.
Depois passa o tempo, a criança vira mulher ou homem -as duas coisas, quem sabe - todos crescidos. O nascimento se torna acontecimento remoto.
As mulheres se enfeitam com jóias, calçam sapatos altíssimos, usam apliques, unhas postiças, pintas artificiais. Os homens andam como pinguins, fumam charutos cubanos. Carros imponentes, deixam a barriga crescer: gordos e satisfeitos que estão.
Tudo isso, lhe digo, tudo isso para esquecer de onde vieram. Lá dentro das partes baixas da mulher. Admito ser uma verdade muito dolorida. Haja pó de arroz para afastar a tristeza e haja uísque para se afastar dessa tragédia.
Leitor, não sei se é o seu caso ter nascido de cesárea e evitado caminhos estreitos. Entretanto, tenciono relembrá-lo que, de qualquer maneira, somos iguais e não importa que seja um desviante daqueles que nascem pela barriga. Fato é, que se não lhe tirassem por ali, teria saído acolá - se é que me entende.
Ninguém no mundo inteiro esperava por esse escândalo. Ter um filho pertinho de onde sai o xixi.
O que me leva a crer que o nascimento tem um caráter pedagógico, assim como a morte tem. É apontar com frieza e racionalidade de onde viemos e para onde iremos.
Não importa quantas lasanhas você comeu ou se usava óculos escuros. Saímos de um buraco para cairmos em outro. Desculpe-me a franqueza.

20.2.09

Ressentimento

Escrevendo sob encomenda renego o meu tema. De cara e sem pestanejar. Aviso logo que falarei sobre escavações mineralógicas. Fósseis. Ponto-cruz. Trânsito.
Falar sobre ressentimento é como repetição. Pisar mil vezes na mesma poça. Sujar mil vezes o sapato.
Ressentimento é apego ao amargo. É chupar um dedo azedo. É guardar vômito para cheirá-lo ocasionalmente.
Ressentimento é miolo de pão. Com água, incha.
Preenche espaço que poderia ser utilizado para torta de maçã. É como comer cinco quilos de farinha antes de um banquete. É o mesmo que se alimentar de olhos de minhoca: ineficaz. Não funciona, não presta.
Ressentimento é um ciclo vicioso de maltratar o coração com o passado.

O certo é matar os sentimentos(-re). Uma lesma morre com sal sobre ela. E sentimentos prescritos serão superados com a boa dose de presente. Coisas leves que extraímos das árvores, do céu azul, do pássaro colorido.
Funciona como sal, como bálsamo.

Mudemos de assunto, porque isso já passou.

17.2.09

Paz iletrada, inominal, infame.
Seria lícito aprontar-se, será verdadeiro?
Pronto está. Pronto está o começo.
Desde agora e
................................... para sempre.

Imag
.....ine
Imagem da
.....imaginação

Atalho
...palavra de
de tempero

Boca palavra de
c o n t o r n o.

Cal
....cula
.....dora : por que tem números nela?

VoraZ
.....Letras do fim

Fim. palavra do silêncio.

15.2.09

Que será?

Voz redonda de veludo cândido
Cortina de renda em casa bonita
Uva sem caroço. Cor vibrante de ameixas
Imponência de sorrisos tímidos
Ninho de pássaro-filhote
Cheiro de férias. Tonalidades de pôr-do-sol
Picolé em dia de praia
Anel favorito, herança de avó
Gargalhada de tio engraçado
Água em tempos de sede
Carinho nas mãos. Beijo nos dedos

Delícia
Rendição eterna.

- É amor? - grita o interlocutor.
- É começo - berra o povo.
- Tem perigo? - vacila o gritante.
- Esperança - entoa o berreiro.

11.2.09

Mar inundado

O dia em que o mar inundou, só o Deus do céu explica. Foi abundância para tudo que é lado. As rosas nasceram com quinhentas pétalas. O sorvete veio com quinze bolas. E cada pessoa dava dois sorrisos por vez.

O dia que o mar inundou foi uma aguaceira só.
Tudo no mundo ficou molhado:
os olhos;
saliva;
carga de caneta.
Os sentimentos ficaram liquefeitos e todos ficaram molengas. Quem tinha raiva, ficou com preguiça. Quem tinha aflição, ficou com tédio. Quem tinha paixão, ficou com vontade.

E assim passava o dia. Na inundação do mar.

Tudo se tornou beira, até que se tornasse fundo. As praias de cada um viraram oceano. Nem montanha virou ilha. Nem cume deu conta de ser tão alto.

Que dia!
Dentro das mãos das crianças cabiam rios inteiros.
E dentro da blusa dos outros brotavam corais.
Coisa esplêndida.

Aquele dia.
Tinha um murmurar de delírios doces. O amor incidiu graciosamente sobre a humanidade. A ponto dos cânticos serem a nova linguagem.
Homens viraram reis e mulheres rainhas, reinantes num reino de nuvens.
E tudo era verdade.
E tudo sossego.
Em tudo paz.

Afoguei-me de tanto mar. Só nesse dia morri seis vezes, queria, porém, ter vivido mais dez óbitos.
Pena, o dia acabou.

1.2.09

{ }

Sobrou espaço para uma poesia.
Mas tem que ser pequena, que me falta espaço.
Mas tem que ser rápida, porque digeriram o tempo.

29.1.09

Ide.a.lismo

Em certos tempos acredito no amor.
Alguns trâmites coronários me parecem dignos de um coração. Assim, desejo adotar o sentimento.

Adotei um amor-ideal.
Que tem cabelo, estatura e cor discriminados.
Tem nome, voz e ternuras certos.

Funciona como uma idéia mórbida chamada esperança. E trabalha com uma variável ingrata: expectativa.

Amor ideal uma ova.
É fascínio incrustado no tórax
Tilintar de tesouros na mente

Bobagem mais doce que a vida
Espectro de sonhos reais.

22.1.09

Telha

Deus resolveu fazer coisas boas
estreiou contigo
e ficou sendo estréia por mtas eternidades

de piscadelas de Deus

Ele mesmo criou e ficou

pis

cando

pen

sando

Como foi que criei coisa tão linda?

Nandita

Coisa linda de piscadela de eternidade

19.1.09

Num mundo tão cheio de nós, seja bem-vindo a mim.

Duas filhas

Dá-me água, disse a pequenina. Tenho sede, disse a mãe.

A menina da casa sobe as escadas e desce com os pedidos.

Dá-me vida, disse o mundo.

A menina da casa sobe as escadas e vê o céu.

No fim do mês voltem a mim, talvez eu consiga assaltar algum sonho e trazer esperança para todos.

13.1.09

Josefina em prantos

A música que você toca é o que já foi melodia em mim
O ritmo das suas batidas é o balanço dos meus pés
A estupidez das suas palavras brotaram do meu riso.

Música babaca a sua, porque o que se toca
. já passou em mim.

As partituras
estacionaram
no esquecimento.

Eu marcho para as trombetas.
Flautas dulcíssimas

A minha melodia não se toca duas vezes
Nas minhas veias nunca corre o mesmo sangue. Não escorre igual.
Há anos que percorri o universo, trago em mim resquícios do céu.

Não há alegria que não brote nos meus lábios
aquela música é eco
Ouça o que lhe digo agora:

O som de
mim
percorre todos os espaços

Bata seus passos, marque seu compasso na terra.
Então venha me procurar.

Traga um árco-íris nas mãos e flores entrelaçadas no peito
Que a sua boca emane amor para alimentar uma alma inteira
Traga a luz do infinito até os meus olhos
que suas mãos encerrem oito mares

Serre a podridão da desesperança
Enxerte sonho

seja Homem
Seja homem.

8.1.09

Guerra em Gaza

O mundo balança, balança e geme no fim

Um cantiga qualquer
Quais quer que sejam as notas?
Quais deveriam ser os sussurros?

De paz. De moRte.

Menino morto em Gaza.
Coração apodrecido no chão

Menina morta na foto.
coração que se desmantela na terra

Então se explodem crianças?
É verdade que o mundo acabou.

Lágrimas jorraram da minha garganta
a voz que eu tinha
silêncio

Diante das baixas
silêncio

Diante de crianças mortas
silêncio

Diante da crueldade humana
calada.

Minha alma adormeceu dentro de mim
como quem se recupera de um longo pranto

Vi as trevas em plena luz
Estava na sola dos sapatos, o sangue, a infância perdida

Jogaram uma bomba
Eu era a menor desde grande

Nossos pequeninos morreram.