15.7.09

Dorinha

Outro dia estive pensando: que é o futuro senão pingo caído no chão? Pingo de chuva morto no chão, vem do céu cai na terra, vira lama. Futuro é isso, não se engane. Em algum lugar o ‘agora’ se chama ‘tempo real’, e todos querem. O tempo real. E o que é o passado então? Tempo ficto. Deve de ser. Deve de ser. E com caraminholas na cabeça, não me sai dos pensamentos que o presente para mim é o mais utópico, é sensacionalismo, fantástico em demasia. Não gosto de viver de futuro, porque esse inventar me cansa, são tantos caminhos e sóis. Gosto de beber do passado, rememorado e findo. Refaço notícias gordas e frescas. É o que gosto. O passado me alimenta e se projeta em meus olhos, vejo tudo medieval, meus vestidos se alongam e rendas brotam em meu colo. Gosto dessa nostalgia inventada, de fazer do mesmo fato milhões de estórias. Reler e reler, sem se prender ao verdadeiro.

Melhor que o futuro, amigo do agora, cheio de surpresas nefastas, impregnado de acontecimentos podres. Não tenho fé no futuro, nem esperança no agora, o que me encanta é o passado. Arrasto-me sobre ele e absorvo seu cheiro de flor ida. Desde muito vivo sepultada, morreram e com eles me faleci.

Estava caminhando nas minhas próprias casas e senti um pingo de chuva cair em mim. Pode isso? A chuva perseguir os reclusos? Senti-me intimidada pelos céus, lotados de nuvens molhadas. Vez por outra, me pego andando pela rua e sendo gotejada, pingo único só para mim, demonstrativo de que não existem tetos: somente céus e infernos.

Isadora é nome meu. Nome de dor poderosa. O mundo sente-sabe quando nasce uma fagulha de destroço, nasci-me, desde pequena nasço sempre. Já fui de todo jeito, já comi todo tipo de comida. Meus olhos que continuam mesmando e meu cabelo que continua em fios. De resto sou outra mulher. Dorinha que me chamam e eu atendo. Não sei porque sabem meu nome, quisera eu que se emudecessem ou que meus ouvidos se fechassem. Seria meu descanso, meu milagre.

Sempre esse abandono velado. Toda vez em prontidão, esperando quem me espanque. Dorinha, dizem, você é uma flor amarela pequena e pura. Dorinha, exalam, seu cheiro é bom e sua pele macia. Dorinha, pedem, deixe de estar e venha para eu ter. Dorinha, mentem, nada de mal lhe acontecerá.

Usam o diminutivo para aumentar minha vontade, vou-me rasteirinha, regando-me toda e inventando canções de amor. Trabalho por horas a fio, engulo arco-íris sem fim. Observo o dourado da palha. Recito minha crença antiga: existe o amor, existe amém.

Dorinha, explicam, tenha paciência comigo. Dorinha, calam. Dorinha, massageiam, você é mais bela que o som. Dorinha, concluem, vá embora tenho medo de amar. Abrupta socorro-me lentamente, pego minha crença mendiga, pedaço de papel desvantajoso, a guardo dentro da blusa, colada no peito, no quente do corpo. Com esperanças de que se transforme em viva com o calor do que me falta.

Por isso me apego ao passado, me aquietam os desastres já conhecidos, aquilo que já foi mastigado. Quando futuro, se rasgam os emblemas, fico sem escudos ou origens. Dorinha é que me falam, sou diminutivo de sofrimento simples. Pereço boba como uma mosca, mas brilho como uma estrela.

Esse é o meu lamurio, enfim, confundo a todos com uma realeza típica e inacreditável. De repente viro castelo, com flechas, armaduras, estalagens. Sem entender porque me fazem assim. Não há batalhas, grito afônica, sou imponente: mas também sou refúgio. A arma que fere também serve para defender. O muro que separa também ajuda a permanecer unido. A porta que fecha, encerra coisas valiosas. Nessa hora, meu nome vem completo de Isadora e se esquecem que sou mais borboleta do que princesa, vão destroçando tudo com demonstrações extraordinárias. Penso que sou Dorinha só para o que dói, para carinho miúdo e bom sou Isadora a deusa. Mosca-estrela, como sempre se diz.

Seguro firme minha crença imunda, devoro-a: fico grávida do que nunca será.
existe o amor, existe amém.