21.9.12

Voo sem assento



Vez por outra olho para o céu e fico imaginando como deve ser. Tocar as nuvens, como seria a sensação de ver os precipíos lá do alto. Pairar acima de tudo. De não ter medo do fundo e perder a dimensão do que é ser finito. Os céus são como uma gargalhada, carecem de limites, desmancham as fronteiras. Porque é imenso aquilo que não captamos com nossos sentidos. Aquele gosto que não cabe na nossa língua e aquela imagem que ultrapassa nossa visão. Quando as classificações  se dissolvem e desmaiam. Isso é imensidão. Uma pipa no céu é paz. A mão de um bebê é amor. É assim que eu vejo.

Silêncio não é pausa. Silêncio é a correnteza que cala. As melhores e as piores coisas só cabem no silêncio. O silêncio é o lugar do tudo, onde nascem e morrem todas as palavras, onde há espaço para o movimento contínuo e forte, onde qualquer tipo de linguagem é prescindível. O meu silêncio é sempre tão denso que prefiro falar, mas eu moro no não dito. Não é a mudez do outro que me incomoda, mas a nudez que se dará em mim. De ficar ali, despida, balançando em mim mesma, abraçada pelas minhas próprias melodias, toda íntima. Toda minha. Não, se me deixam quieta, leem tudo nos meus olhos, minha boca logo revela sorrisos encardidos, sonhos deliciosos. Não. É preciso falar e distrair, para sozinha, depois, repousar, exausta em mim mesma.

Talvez haja chegado o momento em que eu suba no palco de boca vazia, de traquéia morta. E me dê esse luxo de não preencher vazios. Os enxertos serão sempre destacáveis. Tente ver o quanto de mim eu não tenho.

De tanto ver, observei que de longe tudo é menor, como por um passe de mágica somos nós quem nos tornamos gigantes. E mesquinhos. O Himalaia não é nada diante da profundeza de nosso umbigo. Fazemos grande aquilo que podemos ver. Geralmente, mas nem sempre. A esperança funciona como uma espécie de passarinho que vive dentro do nosso peito e de lá não pode sair. O passarinho pensa que sabe voar e pensa que gosta do céu e pensa nas nuvens. Mas esperança de passarinho só sabe esperar. E esperança passarinho só é boa se faz cantar e se constrói ninhos e diz que nunca mais vai embora. Aí a gente se sente feliz.

Não existe nada mais triste do que estrangular um sonho e sufocar um futuro. É um aborto que escorre pelas pernas espalhando sangue e pedaços de alegria morta. Sangue e alegria morta. A sensação é de esganar o coração, colocar as mãos no pescoço do nosso peito e matar-nos a nós mesmos. A vida é questão de crença. E amor é delírio conjunto. Revisite isso com a razão e veja se não se perde o melhor.

Eu já não tenho bandeira específica. Espalharam cartazes por aí: não toque, não tente, não prove. Letras garrafais estabelecendo regras intransponíveis. Tão pequenino fica o espaço, tantas restrições que a felicidade fica espremida entre o medo e angústia. Perco o objeto, mas não perco a ação. Quero sim, tentar, tocar e provar, pois tenho para mim que a vida é curta e as pessoas não são eternas.

Desistir enfraquece a alma. Tenciono ser exageradamente feliz. Não quero passar por tudo isso e levar um souvenir da vida, um certificado de papel:"obrigado por participar". Não! Quero perder um dedo, arrancar verrugas enormes, um tiro na coxa, comer besouro, ter a barriga castigada de tanto riso, ter pelo menos dois dentes podres, ter um benzinho, filho, tatuagem e um fusca verde. Fico olhando para essas placas e pensando se vai ser sempre assim. Essa maldita sintaxe com sujeitos muito loucos. Só o verbo salva. Pois é.

13.9.12

a morte do velho


Por mais que evitasse, muito do que lhe faltava tinha a ver com mortes. Recentes e doloridas. Dorinha (chamo assim por carinho mesmo), se encontrava aérea a maior parte do tempo e ainda que se distraísse com uma ou outra alegriazinha boba, havia um canto bem fúnebre dentro do seu corpo.


Há alguns meses seu avô tinha morrido e, todos sabem, que avô é criatura divina, com cabelos brancos e ares de profeta. Dorinha andava sonambulando de dia, pois de noite sonhava com o avô, cada vez com uma doença diferente. Na noite passada viu seu velhinho sem pernas e muito sujo, num hospital público e enferrujado. Diante do quadro, Isadora não se desesperou; enquanto existe vida, resiste a esperança, pensava.
Foi logo dando banho, pondo ataduras arrumando o lugar todo e ele se sentiu feliz. Segurou forte na sua mão, respirando tranquilo. Foi difícil a batalha, ver tão jogado seu ascendente tão direto, tão geracional.

Não foi com pouco horror que acordou e percebeu que era tudo mentira e que já estava morto, enterrado e decompondo. Afundou na cama, com lágrimas infinitas e descontentes.

Seu avô morreu careca, mas com dentadura limpa. Semanas antes de morrer, Dorinha foi estar com ele, tentando transmitir tudo de pulsante que havia. E por isso escovou os dentes do avô, mais para fazer graça do que para fazer utilidade. Chegou no quarto faceira, dizendo: “Vô, escovei seus dentes”. Não falou que fez isso com o coração esmagado e debruçada sobre uma prótese morta de sorriso.

Desde então, o Jadinho procurava estar sempre com sua armadura de dentes, para que, se eventualmente resolvesse gargalhar, o fizesse aprumado. No dia em que morreu, a esposa só soube porque as dentaduras ficaram pendentes, depois veio a cabeça baixa. Mas, a dentadura foi o estopim da descoberta. O desencadear fúnebre foi por causa dos dentes. Dentes que Dorinha havia limpado.

Morreu também depois de tomar um copo de suco de laranja. E copo naqueles tempos era medida de coragem, pois seu corpo pedia mesmo eram goles. Mas ele quis copo, como que para esfregar na cara da morte que lutaria até o fim. Tomou. E morreu. Mas só morreu depois do suco tomado. E só abaixou a cabeça depois de morto.

Em vida o Jadinho era pequeno, menor que Dorinha. Estatura pequena, pensamento afiado. E se diz afiado. Fofo não era, lindinho tampouco. Era agressiva sua meiguice e seus carinhos eram abruptos como uma tempestade. Sua graça estava justamente nessa força e sagacidade imensurável, nessa capacidade de reação forte para qualquer tipo de questão.

Café da manhã. Todos comendo. O Jadinho reclama das formigas. Almoço, o Jadinho na pia, olhando fixamente para as formigas. Lanche. E então foi demais. Formigas demais. Dorinha ia para cozinha, quando, de repente viu o avô pronunciando palavras de ordem. “Agora quem sacaneia quem? Morram suas vagabundas!”. Com uma água fervendo matava as formigas da pia. Dorinha perguntou: “Que é isso, vô?”. “Ferrei com elas”, disse com aquele riso desmontado e com a vingança gostosa de quem prevalece no fim.

Durante o tratamento do câncer, na era em que ainda tinha cabelos. Aliás. Quão lindos eram. Totalmente brancos lisos partidos no meio: faziam uma curva que formava duas asas laterais, bem postas e organizadas. Quando os cabelos lhe caíram, logo depois morreu. Não sabia viver sem seus atributos essenciais. Naquela era, teve uma conversa interessante sobre tecnologia.

Havia voltado do Inca e relatava os absurdos inimagináveis que o computador pode fazer. “Fiquei umas duas horas deitado naquela merda, aquela porra girando assim perto da minha cabeça. Pensei: caralho, essa porra vai bater em mim. Mas não bate não. Como é que pode, né? Coisa incrível. Depois eu saí e já estava lá, tudo no computador para o médico ver. Coisa de maluco.” Dorinha fazia que sim, se divertindo muitíssimo com sua boca suja e com suas impressões, no que Jadinho continuava: “ Olha, minha filha, daqui a pouco ninguém vai morrer não. Vai viver tudo zumbi por aí. Não sei como vai ser esta merda, mas ninguém vai morrer não. Eles lá fazem coisa do arco da velha. Tecnologia, né?
É, não é brincadeira não, minha filha. Onde é que esse mundo vai parar. Porra, onde vai ter lugar pra essa cassetada de gente?”
Pelo que Dorinha respondeu: “Que gente, vô?”. “Porra, minha filha, presta atenção, esses filhos da puta que não vão mais morrer. Ficar todo mundo zumbi. Vai ser uma merda isso. Espera só. Só quero ver, vai ser uma merda.”

Dorinha riu alto, o Jadinho apertou os olhos, inclinou a cabeça, com raiva. Logo depois, riu, se rendendo. Acrescentou, depois de morder a boca (sentia dor): “Tecnologia, né?”. Dorinha teve vontade de chorar. De rir. Eles se amavam.

Cofres. Jadinho fazia cofres. Fez de madeira e pintou de branco. Com um pincel salpicou verniz. Dorinha tinha um cofre malhadinho, para juntar dinheiro. No começo todos se divertiam com o fato de que a criança não poderia retirar suas finanças, assim aos poucos, como fazia com os outros cofres. Jadinho entregou o cofre com um sorriso: “quero ver você abrir esta merda, coloquei tanto prego que...”. Dorinha olhava para o presente estupefata, enfim algo poderia dete-la, ela realizaria seu sonho de juntar, juntar, juntar. Um belo dia, Dorinha pegou martelo, faca e foi para o terraço. Tirou o tanto que precisava e calmamente repregou. Fez isso por muitos e muitos meses. Até que a madeira da tampa começou a se desgastar o os buracos guardadores dos pregos ficaram enormes. Era o fim. Dorinha não sabia consertar.

Sabedora que levaria uma bronca, foi mais corajosa ainda. Quanto maior a briga, de mais coragem se precisa: “Vô, conserta para mim?”. O Jadinho olhou surpreso: “Tu é uma filha da puta, hein, minha filha”. Consertou e ameaçou: “Não conserto mais esta porra não, tá me ouvindo?”. Dorinha ouvia atentamente. E ele consertava o cofre pelo menos uma vez por mês.

Ranzinza. Mandão. Nos últimos meses de vida resolveu fazer a unha. Atendeu a pedidos. Ficou bem melhor. Dorinha ficava lembrando disso. Do seu avô com frauda, do seu avô na escada pintando a casa. Lembrava das bermudas que ele usava. Na última vez que esteve na casa dos seus pais, seu avô usava uma camisa de propaganda, propaganda de cerveja.  Jadinho sempre se vestia impecável, aquela blusa por baixo da camiseta foi uma surpresa, um deslize. Dorinha riu. E para distrai-lo da dor e tosse, disse: “Vô, que camisa bonita!”. “Ah, minha filha, gostou? Eu dou para você”. “Era brincadeira, vô”. “Tudo bem, minha filha, eu dou, não tem problema não”. A voz dele estava sumida, a febre estava muito alta, eles estava sozinhos em casa. Dorinha pegou a meia mais colorida que possuía e pôs nos pés do avô. Pôs álcool, para diminuir a febre. Passava álcool no corpo dele, orava, e passava álcool naquele corpo magro. A febre se foi. Jadinho foi voltando dos delírios, olhou para o pé: “caralho, que porra de meia é essa?”. Dorinha riu muito. Ele fez cara de bravo risonho. Eles tinham esperança.

Mas morreu, o velhinho. E ela não parava de sonhar com ele, doente ainda. Meses depois da morte. Talvez porque quisesse cuidar dele mais um pouco, por puro egoísmo, extremo amor. No armário do Jadinho acharam um facão enorme. Descobriram muitos segredos gozados. Que pena, Dorinha pensava. Queria mais dele, que pena.