27.10.13

Assunção

 Num mundo em que juras de amor são proibidas, faço juras de todos os meus desejos. Em que o eterno foi banido, comprometo todos os meus instantes.

Talvez seja o tempo de assumir possibilidades e deixar de se encasquetar com a certeza. Num movimento fluido  de se abandonar. E recriar-se no próximo passo. Como se o passado tombasse e o presente descansasse e pudéssemos andar livremente. Sem o peso insustentável das feridas. Sem o vislumbre cíclico das chagas. Apenas um passo. Uma nuvem e o horizonte. Nem voo, nem corrida. Nem arrastar-se. Como quem finca a travessia, sem saber por onde vai passar.


Vamos indo, todos nós: fantasmas: vivos ou mortos. Lamber a vida.

9.10.13

Morricenta

Foi na véspera de Natal que descobri que minha infância tinha morrido. Por um desastre qualquer, houve uma cisão e, me explicaram, eu deveria ser boa. Eu já não era boa o bastante. Não. Mais.

Uma fila de visitas, abraços. Desolações. E batiam levemente na minha cabeça, sem olhar nos meus olhos. Mãos firmes no meu queixo e levantavam-me o rosto: seja uma boa menina, ajude seu pai e seus irmãos.

-Mãe?

Melhora logo.

Temos que ser bons o bastante. E fomos. Suportamos as dores mais trucidantes. Uma sensação de estrangulamento constante, que nunca mata, por mais que se peça.

Fui boa. Não chore! Não choro. Dar leveza aos destroços que se amontoavam. Salvar sua alma da desesperança.

Inaugurei uma nova existência sem reclamar de tragédias, banidora de tristeza: e caminhava. Dia após dia. Arrastando tudo com uma força sobrehumana. Havia um abrigo e era para lá que nos levava. Morri de fome, morri de sede. Morri de tanto gritar. Morri por quatro golpes fatais. Morri por palavras mal proferidas. E achei abrigos dos mais diversos. Achei paraísos, destruí oito infernos.

Tire a mão do meu queixo e não me peça para ser boa. Nunca mais.

E de tanto prosseguir: tornei-me forte, indestrutível e grave.

Ser boa é maturar-se e só cabe a mim. Só cabe a mim existir.