31.8.20

Alpinismo

Hoje tive uma saudade de escrever para os personagens que inventamos e amamos de maneira misturada. Hoje meu coração acelerou na aula de yoga e me veio um medo do pânico. Fiquei em pé, como se tivesse sido a aula à me levar à uma pausa, mas foi a vida, ou aquilo que eu ficava lembrando da vida sem parar, que me fez parar. Bebi a água quente da minha garrafa olhando para o céu, com os olhos bem para cima, de quem precisa falar com Deus e se segurar nas nuvens. E implorei silenciosamente que eu e Ele me ajudassem. Deitamos todos de bruços com a bochecha direita no chão, meu coração continuava alucinado. De vez em quando, antes de dormir, meu coração tem galopado e pensar nisso me dá uma secura no maxilar. Meus pensamentos ficam como pipas enlouquecidas do subúrbio, com excitação e descidas espirais por movimentos falsos.

Eu nunca aprendi a empinar a pipa sozinha, meu pai colocava no alto. Quando era ele a segurar a pipa, eu puxava para um lado para o outro, mas ela sempre virava de ponta cabeça e acertava o chão com brutalidade. O bico mais longo de quina na calçada quebrada e a rabiola atônita se embolava num ou noutro objeto proibido.

Meu pai é cheio de defeitos, mas tem qualidades que sempre me ajudaram a viver melhor e mais feliz. Meu pai pegava a pipa, consertava o que precisava ser consertado e tentávamos de novo. Até ele ou eu cansarmos. Eu tinha impressão de que só parávamos porque eu tentaria mais depois. Falhar era só uma etapa para aprender. Eu não aprendi a soltar pipa, nem a rodar um pião sozinha, nem fazer embaixadinha com laranjas (nem com bola). Mas eu aprendi a tabuada, eu aprendi a nadar cada vez mais longe, eu aprendi a contar estórias, a fazer com o que tenho e a ser criativa na falta.

Quando meu coração acelerou hoje, eu pensei em duas amigas que tiveram crise de pânico. Uma delas me disse que entrou no hospital de cadeiras de rodas porque não conseguia nem andar. Eu pensei que aquele coração acelerado era um convite do medo, resolvi declinar. Consegui declinar. Sai na rua de mãos dadas com minhas amigas que moram há mais de 3 mil quilômetros, agradeci por elas terem compartilhado a experiência delas comigo, desde as mais físicas (o momento que a crise vinha no corpo), até o caminho de saída (os pensamentos, as decisões, as mudanças). Peguei um atalho, que passava pelo amor dessas pessoas. Lembrei da mão gordinha do meu pai e na liberação que minha mãe me promove. E me aninhei na paz.

Se um dia você também ficar com muito medo de ter medo e seu coração acelerar, eu tenho um conselho. Ele se acelera até vir pulsar na garganta, depois ele ecoa no tronco como se você só existisse para aquelas câmaras de sangue. Nesse momento, que dura alguns segundos infinitos, aceite o seu medo (da morte, da vida, do trabalho, do desemprego). E eu te juro que seu corpo se recoloca como seu. Eu gosto de esticar minha alma nessas horas, numa longa expiração. E aquele monstro se dissolve. Todos teremos visitas dos nossos monstros, olhe bem para ele e tente aprender a não mais se assustar. Raramente eu quebrei uma pipa numa daquelas quedas, mas, uma coisa que eu aprendi bem, foi consertá-las.

24.8.20

Colosso

Quando eu fui escrever “amor”, minha caneta se dissolveu e dezenas de milhares de litros de tinta rosa caíram no meu bloco de anotações. As letras ficaram borradas e fantasmagóricas como uma espécie de mal presságio. Fiquei com medo e acendi uma vela com perfume de bananeiras. Fiquei com medo da vela botar fogo na minha casa e nas minhas coisas e nas coisas dos outros e no prédio. Fiquei com medo de incendiar a cidade e. Fiquei com medo de incendiar a região onde moro, então. Fiquei com medo de acabar com o continente europeu e queimar diversas universidades, então coloquei a vela num copo. O copo por sua vez tinha um desenho de uma mulher com blusa amarela que fica com a cabeça de lado, pro lado esquerdo e com paisagens de cana-de-açúcar - numas cores muito lindas mesmo e escrito “rhum blanc, Martinique”. Esse copo não é meu, por várias razões. Dentre elas é que pertenceu à uma família de franceses que doaram pro seu filho, os copos, e dentre outras coisas que eu uso do filho deles, eu uso esse copo. Eu gostava muito também de usar roupas e acessórios dos meus familiares, mas eu tenho evitado porque dá muita saudade - moramos longe e meu coração não aceita bem.

Talvez você esteja se perguntando por que eu estava escrevendo “amor” com uma caneta rosa estourada no meio de uma pandemia de um vírus de bases chinesas. Da minha parte, não sinto vontade de me alongar nesse assunto e acho que é o menor dos seus problemas. Eu estou em busca de novos leitores, pois busco validação e sucesso pessoal. Financeiramente, ganho meu dinheiro vendendo pães – que não tem nada a ver com aquele papo de “cada dia”, pois trabalho em escalas muito variadas. O contexto histórico-social do mundo atual atrapalhou meus sonhos de ser escritora de ficção. Verdadeiramente algumas cenas apocalípticas fazem parte do meu dia-a-dia e os discursos alucinados de alguns políticos aumentaram muito a competição no reino da fantasia. Sempre pensei que iria enriquecer assim, com uma série de livros com palavras mágicas, mas. Hoje fui entrevistada na rua. A menina implorou para eu falar como era minha experiência de andar de bicicleta na cidade e não precisava nem da metade daquele desespero, porque eu gosto de falar. A situação ficou delicada quando ela me perguntou quanto tempo eu gastava para ir para o trabalho e eu disse que ia mais para a biblioteca e que isso era rápido. Ela parou o vídeo e me olhou de lado, igual a boneca desenhada no copo, e perguntou: “quanto tempo para o trabalho?”. Meu corpo ficou quente porque eu trabalho mais é sentada de casa e a foto no meu computador é o cabelo da minha mãe. Não sou tão profissional. Olhei para ela, pensando nos meus arquivos pdf e na minha vida desmaterializada. Vi uma coisa loira brilhando, ela tinha um buço dourado muito espesso, fiquei com vergonha da minha vontade de querer olhar de novo. Pela glória de um poder do divino social, eu lembrei que trabalho na padaria, por escalas. Falei “35 minutos” e achei um tempo honesto – tem uma subida grande e eu paro no sinal para descansar, isso gera um impacto na minha performance.

Fiquei pensando como seria engraçado se eu cometesse um crime e ficasse famosa. Ela teria meu vídeo e iria se promover, talvez as vendas de bicicleta sofressem. Fora isso não tive mais ideias da utilidade do meu vídeo - uma vez que ela fazia perguntas que juntas direcionavam para uma conclusão inevitável: a opinião dela. Se você for no júri do mestrado dela, já sabe o contexto em que tudo aconteceu. De resto, é isso mesmo, só queria contar o lance da caneta porque achei curioso.