21.8.12

Unodios


Há uma necessidade que ultrapassa todas as fronteiras. A necessidade de conhecermos o celeste.
Ainda que se estabeleça e se finque em nós todo o conhecimento possível, o divino sempre está às portas, nos interpelando e querendo adentrar-nos.

Vez por outra, acham enjoado toda essa insistência de Deus e repetitiva toda essa dicotomia: luz, trevas; bom, mal. Particularmenete partilho a mesma opinião dos ditos infiéis. Talvez porque seja apenas mais uma deles ou, quem sabe, por mera falta do que dizer.

E já que digo, e já que ninguém me impede, prossigo dizendo que Deus, Cristo e toda essa estória de redenção é muito mais tenebrosa do imaginam os desatentos. Isso porque o tal plano da salvação se baseia em amores sacrificiais, morte de Deus, ressurreição do dito cujo. Dá bastante pano pra manga, pode acreditar.

Se você me perguntar se confio nessa sandice toda, lhe respondo prontamente que sim e com o maior prazer. E é muito simples de entender, tudo tem um quê de loucura mesmo e se for para ser partidária de uma, que seja uma doidice bem fundamentada.

Deus, para mim tem lá seus fundamentos. Parecem-me inclusive, como as raízes de uma árvore enorme: profundas, sólidas e dignas.

Adianto logo que não tenho nenhuma pretensão de convencer ninguém sobre a existência e a necessidade que o homem tem de Deus. Em minha opinião, isso é ponto ultrapassado. Quer queira, quer não, é realidade fática. O gostoso se dá justamente nesse papo mole, de perceber em Deus a fonte de tudo o que é bom, daquilo que nos aquieta a alma, alimenta a mente. Nutre.

Se não fosse tão incorente usar, no mesmo texto, o mesmo exemplo para coisas distintas, eu diria que nós somos raízes e Deus é nosso solo. Há uma infinitude de nutrientes, vai de cada um captar, sugar dEle e se tornar mais forte e produtivo.

O que me impacienta nessas conversas sensatas que temos (sobre Deus, o tema hoje é esse), o que me impacienta é essa hipocrisia de adiantarmos que não somos interesseiros, que não queremos, de maneira nenhuma, nos aproveitar do Todo-Poderoso. Aquilo que ele der está bom, e como foi feito, feito está. Então, desculpe a crueza, é que o erro engole o acerto e perde-se tempo para nunca mais tê-lo de volta. Ora se Deus vai se importar que você peça de um tudo a ele e fale de todos os assuntos e comente cada cor de flor?! Penso que ele gosta bastante dessa interação, dessa comunicação e, oh, por que não dizer: amizade.

Sinto um medo de quem não quer incomodar Deus. Como se ele fosse um velhinho, meio surdo que não devemos acordar na soneca da tarde. Parece que Deus assim, está eternamente vestido em lençóis, andando vagarosamente em uma estrada nublada com gelo seco. E haja gelo seco para um Deus tão etéreo.

Infelizmente, meus pensamentos são mais carnais. Imagino Deus comigo enquanto como. Na hora de atravessar a rua e na liquidação do supermercado. Vejo Deus, nos seus atributos, estalando um céu azul e borboletando vermelho por entre jardim. No riso da criança. Ali ele está. Naquele trocador engraçado. Olha Deus ali. No consolo de um sepultamento. Firme como uma rocha. Nos desastres da vida, leve como pena.

Deus tem cheiro sim. E cheira a tudo de bem. E tem forma, com certeza, ao invisível que meus olhos captam.

14.8.12

El pájaro


Hoje estava andando pela rua e reconheci Quitério. Aqueles cabelos ondulados e lustrosos, todos os fios cuidadosamente ordenados para trás. Não havia mais topete. E aqueles olhos: imagine uma floresta, com todos os tons de verde e marrom. Era assim os olhos de Quitério. Sempre lembro dos dias solares, quando seus olhos absorviam todas as cores do mundo.

Tamanho foi meu espanto quando atravessando uma passarela, lá perto do céu, vi Quitério na calçada, usando a mesma roupa de sempre. E os mesmos sapatos e o mesmo ar melódico. Mas seis anos se passaram, como tudo aquilo poderia subsistir? Da última vez que nos falamos ele me garantiu que estava às portas da morte e não havia nenhum meio de sobreviver.

Reconheci a muda de roupa, era a que ele usava para encontros amorosos, resolvi segui-lo. E lá estava ele, caminhando, usando os mesmos passos de sempre. Entrou num parque, riu para um pato e sentou num banco. Parecia feliz. Começou a roer unhas. Parecia ansioso. E uns muxoxos sairam estalando de sua boca. Chateado. De repente a mulher chegou, linda! Não, nem tanto. Bonita. Um pouco trivial. Cabelo meio morto. Mas tinha lá seu valor. Deveria ter.

Involuntariamente me vi como que andando no passado. Os gestos, as palavras e até o amor dele pareciam iguais. Os poemas declamados, as pausas e as confissões. Eu mal podia acreditar. E senti como se um raio me atingisse e passei a ver com os olhos dele. Aquela mulher antes tão viva, agora tinha ares de espectro. Parecia uma sucessão de imagens sobrepostas. E me vi lá, fantasmagórica. Eu era ela também. E fiquei imaginando em que tempo estávamos. Não conseguia mais distinguir-me das memórias.

Pobre Quitério vive parcamente com um amor sempre podre pendente no peito. Com sensações velhas escorrendo, com expectativas caducas. Os pés virados para frente, a cabeça voltada para trás. Fica dando voltas, sem percorrer novos caminhos por medo de ficar perdido. Coitado, perdeu-se a si mesmo. E agora fica vestindo as mesmas atitudes. Sem saber que viver é reinventar-se.

Um passarinho. Fiquei olhando um passarinho.

Quitério é antigo e infeliz, lambendo vômitos diariamente. Preso nessas cadeias invisíveis. Amando através de rituais. E lembrei de um jovem rapaz, com os mesmos olhos de floresta, prestes a entrar nesse mesmo labirinto. Meu coração doeu. Um silêncio fúnebre se instalou, como a morte de um ente querido. Foi quando percebi um passarinho olhando para mim - que definhava em aflições. Ele veio, pulando, calmo e bonito. E se colocou nas minhas mãos abertas. Aquilo parecia um sonho, trouxe o pequenino para perto do meu rosto e me acariciei nas suas penas.

 Então ele se foi. Ergueu-se no ar, buscou um galho alto e cantou assim:

"As asas da esperança
enterram abismos.
Não tema,
não tema passarinho."


11.8.12

Mate


Eu sempre tomei mate leão. Mas mudei, porque eu sou livre, radical e aberta ao novo.
Agora compro mate aos quilos nas Casas Pedro. Compro chá verde – e nunca tomo. É bom pra celulite. É o que dizem. Mas eu nunca tomo. Comprei pimenta também. Pimenta é bom para o coração e outro dia senti meu peito doer. Pode ter sido gases. Isso é. Isso é tão indigno, essa dúvida: “será que morro ou peido?”

Agora. Eu deveria estar estudando ou praticando meditação. Mas falar sobre peido é fantástico. Peidar na água melhor ainda. Aquelas bolhinhas. Você lá, no mar, uma flatulência secreta e selvagem. Sim, você é totalmente selvagem também. Eu tenho uma amiga que adora tirar meleca. Certo. Eu gosto de limpar os ouvidos. Os meus. Com cotonete mesmo, higienização total, muitas vezes ao dia. Um vício.

Percebe? A vida passa e a gente peidando por aí. A gente peida até em igreja, em tempo de matar os anjos sufocados. A gente peida no próprio lugar onde vive. Coisa terrível! Melhor do que xingar ou babar nos outros, isso sem sombra de dúvidas. Peido é coisa muito nossa. E já parou pra pensar a quantidade de coisas que ninguém pode fazer por você?

Ninguém pode falar com sua voz e ninguém pode amar por você. Ninguém pode nutrir suas esperanças e essa gargalhada que você tem presa na garganta só sai quando sua alma ri. E por que ela ainda rindo tão pouco, a sua alma? Por que os problemas acamparam no seu peito?

Venha aqui, meu bem. E pense leve e alto, feito pipa sinta comigo as nuvens. Venha que eu construo um paraíso de palavras para você habitar. Diga seus sonhos que faço deles sua cabana. O meu dom é ser jardim. Eu faço florescer os encantos. Eu sou sua flor. Sou semente e pétalas. Sou brisa, meu amor. Deite aqui, feche seus olhos e descanse. Está tudo bem. Sou rio. Sou tudo. E nada mais.

Isso é tão indigno, essa dúvida: será que morro ou montanha?

7.8.12

See saw


Por onde começar? Talvez com uma música ao fundo. Com uma viola tocando afinada, uma mulher espanhola com cigarro na boca e olhos murchos e um pandeiro, tocando, tocando. E uma paçoca empapada na minha boca. O ônibus passando e levantando poeira. Um cara ensebado sentado de perna aberta na calçada, um cachorro que mija na bicicleta.

Ou quem sabe o melhor cenário fosse um lago de gelo. Com focas sufocando lá embaixo e um esquimó perigoso afiando uma faca, comendo peixe cru. Um lobo lambendo as patas no Ártico.

Por Deus! A vida é tão rotineira. É escovar os dentes todos os dias, muitas vezes.  E beber água, muita água. Lava o cabelo. Mas o cabelo suja. Sorri. Mas depois chora. Lê para imaginar a história dos outros.

Não eu, ah caro capanga do faroeste, resolvi inventar coisas na minha cabeça. E para um cachorro mijador invento jatos venenosos exterminadores de formigas cósmicas. A mulher gorda que corre na orla: uma alienígena macrobiótica intergalática.

Cada um se vira como pode. Talvez você tome psicotrópicos, não corte as unhas, em depressão: profunda! Eu não. Eu invento. E minha última invenção foi acreditar que em breve vou receber boas notícias. E acordo cedo e checo: se meu cabelo não cresceu mais do que o normal, pego o extrato do banco para ver se não ganhei muito dinheiro, pergunto aos meus pais se eu sou a filha favorita, vejo se a mercearia não está vendendo batata palha mais barato. Porque alguma coisa boa tem que acontecer. Nem que seja eu aprender a dançar bolero. Andei ouvindo que a vida não é só lamento não.

Então, como andei envolta de lamúrios devem estar chegando as boas novas. Logo logo. E eu tenho que estar pronta. Me acostumando a sorrir muito e ter um slogan de sucesso. "O importante na vida é acreditar."; "Malhe os glúteos, sempre." Algo que remonte a tempos antigos e dê a impressão de perseverança. Porque eu decidi que vou ser perseverante.

Certo, e você aí me olhando com essa cara de nojo. Todo entediado, come mais chocolate que arroz, já tem acne até dentro do nariz. Deixa essa esperança florescer dentro de mim, oras. Que mal faz ser feliz no meio do sofrimento? Que mal faz acreditar que o dia nasceu pra me dizer" bom dia, chuchu"?

E a realidade não é cheiro e gosto? E o cheiro cada um sente por si e o paladar só apetece a mim. Tudo meu. As sensações são minhas e delas construo um mar de delícias. De faz de conta. Essa coisa rala e monstruosa que é o medo. Medonho medo. Medo de abrir o peito e ir aos limites de nós mesmos. De sentir nossas vísceras e inalar todo o ar do mundo. Medo de perecer de alegria. Medo. Medo.

Não se engane. Desistir não machuca, desistir é engolir-se a si mesmo, sem mastigar. E viver dentro de si, confortável, sem ter que se esfacelar. Desistir é tomar café depois do almoço, com pernas cruzadas e vendo tv. Não é nada demais. É comer comida da avó. É continuidade.

Eu não. Sou nova demais para esse hábito desgraçado de ficar onde caiu. Já levantei e dei uma volta no quarteirão. Para ver a vizinhança do meu peito. Apenas uma queda. Uma queda fenomenal. Daquelas que mata muita gente, mas eu, só me matam mesmo quando eu morro. E não estou com disposição de morrer por enquanto. Jovem demais para essa rotina remelenta de defunto.

O bom de viver sem estar morrendo é que a gente pode gargalhar, mesmo no meio desses destroços, a gente pode rir a beça. E com um riso no estômago a gente vai lançando os pilares de novo. E faz ainda melhor, planta ainda mais flores. Além do que, com Deus fica meio difícil de se infelicitar: se tudo der errado ainda tem o céu, com toda sorte de pães doces celestiais.

Entendeu?

Então relê. Ou inventa.