14.8.12

El pájaro


Hoje estava andando pela rua e reconheci Quitério. Aqueles cabelos ondulados e lustrosos, todos os fios cuidadosamente ordenados para trás. Não havia mais topete. E aqueles olhos: imagine uma floresta, com todos os tons de verde e marrom. Era assim os olhos de Quitério. Sempre lembro dos dias solares, quando seus olhos absorviam todas as cores do mundo.

Tamanho foi meu espanto quando atravessando uma passarela, lá perto do céu, vi Quitério na calçada, usando a mesma roupa de sempre. E os mesmos sapatos e o mesmo ar melódico. Mas seis anos se passaram, como tudo aquilo poderia subsistir? Da última vez que nos falamos ele me garantiu que estava às portas da morte e não havia nenhum meio de sobreviver.

Reconheci a muda de roupa, era a que ele usava para encontros amorosos, resolvi segui-lo. E lá estava ele, caminhando, usando os mesmos passos de sempre. Entrou num parque, riu para um pato e sentou num banco. Parecia feliz. Começou a roer unhas. Parecia ansioso. E uns muxoxos sairam estalando de sua boca. Chateado. De repente a mulher chegou, linda! Não, nem tanto. Bonita. Um pouco trivial. Cabelo meio morto. Mas tinha lá seu valor. Deveria ter.

Involuntariamente me vi como que andando no passado. Os gestos, as palavras e até o amor dele pareciam iguais. Os poemas declamados, as pausas e as confissões. Eu mal podia acreditar. E senti como se um raio me atingisse e passei a ver com os olhos dele. Aquela mulher antes tão viva, agora tinha ares de espectro. Parecia uma sucessão de imagens sobrepostas. E me vi lá, fantasmagórica. Eu era ela também. E fiquei imaginando em que tempo estávamos. Não conseguia mais distinguir-me das memórias.

Pobre Quitério vive parcamente com um amor sempre podre pendente no peito. Com sensações velhas escorrendo, com expectativas caducas. Os pés virados para frente, a cabeça voltada para trás. Fica dando voltas, sem percorrer novos caminhos por medo de ficar perdido. Coitado, perdeu-se a si mesmo. E agora fica vestindo as mesmas atitudes. Sem saber que viver é reinventar-se.

Um passarinho. Fiquei olhando um passarinho.

Quitério é antigo e infeliz, lambendo vômitos diariamente. Preso nessas cadeias invisíveis. Amando através de rituais. E lembrei de um jovem rapaz, com os mesmos olhos de floresta, prestes a entrar nesse mesmo labirinto. Meu coração doeu. Um silêncio fúnebre se instalou, como a morte de um ente querido. Foi quando percebi um passarinho olhando para mim - que definhava em aflições. Ele veio, pulando, calmo e bonito. E se colocou nas minhas mãos abertas. Aquilo parecia um sonho, trouxe o pequenino para perto do meu rosto e me acariciei nas suas penas.

 Então ele se foi. Ergueu-se no ar, buscou um galho alto e cantou assim:

"As asas da esperança
enterram abismos.
Não tema,
não tema passarinho."