17.5.09

Correspondência

Querido leitor,

Escrevo essa carta na esperança de que as letras não morram sem nascer.
Alguma vez na vida você já esteve tão perto da dor que simplesmente sentiu paz?
E de tanto pranto, secaram-se as lágrimas.
E de tanto amor, um rasgo se deu.
Falta-me a vitalidade do outro. Daquele que perece, num leito, sem ar nos pulmões.
Nessas ocasiões preparamos a fúnebre visita, última. Antes que tudo se torne póstumo e inerte.

Como se aceita que alguém partirá?
Como se canta sobre amores vindouros?
Porque a vida, minha vida, se encerra em lábios frágeis e moribundos. Daqueles que definham, daqueles que são magros. Daqueles já foram fortes e bradavam.
Hoje, caro leitor, se ponho minhas mãos sobre aquele corpo doente, o que recebo é um carinho circular. E mesmo em meio aos destroços, sinto minhas mãos envolvidas pelo enfermo que é mais bravo do que eu.

Eu morro de medo e ele morre de estar vivo. Já viveu sim, bastante, pois bem.
Agora, talvez seja o dia dos lírios findarem e da chuva cair sobre mim.
Leitor meu, lhe digo: não tenho palavras doces, nem nojentas.
Há uma despedida lenta e majestosa. Escorre pelas brechas de mim.

Se todos morrem, por que vivo?
Se todos vão, por que vim?
A minha beleza vem deles, daqueles que com cabelos brancos envelhecem ternamente.
Sepultarei minha origem. Pequena e linda.
Aquele que me deu ferramentas.

Um eco. Chamo e não há resposta.
Não vá, fique para sempre comigo.

3.5.09

Selvagem

Daqueles que comem verduras e destroçam ventres.
Daqueles que têm língua de navalha e cabeça de mel.

Malvados, cínicos do mundo!
Canastrões! Faceiros
Lindíssimas criaturas que mentem, envolvem com piadas incorretas.
Moralmente reprováveis, eticamente os louvo.
Porque são livres deles mesmos e em tudo transborda amor: em não ser sempre sendo

ainda mais

Como se voltas fossem feitas de pontos curvilíneos
Como se lençóis fossem feitos de paz.
Como se fossem de algodão as mãos. Como se a esperança se tornasse grama macia.

E é como se tudo ficasse amorfo e andasse como pato.
pés abertos, peitos esticados para o ar

Cabelo enrolado daqueles que se alisam de tédio
Olhos de quem repara em poesias ocultas, que cabem nas patas de um mosquito
Força! Gutural de uma formiga.
Balanço gostoso de viração marítima.
Daquelas que rodam a gente. Bamba bamba, danço na natureza linda.

vejo tudo ritmado
vilas, palhaços.
dentes que me mostram alegria
sorriem

perdi uns dentes. levei soco na boca
cuspi meu maxilar inteiro e nasceu uma flor carnívora
exótica, mordente

Ah, que exaltação
As palavras ficam germinando, jorrando do poço
Jogadas a metros de infinitos, de imensidão.
Umas vão tão distante que as perco indefinidamente

rodopio de sensações
cansaço de vida
terra no rosto
sou negra, marrom, sou onde se plantam

sou notas, sou arcos
sustento
sou frígida. fingidamente calma

sou máscara
imponente escritora de fantasia
mas eu acredito
respiro meus delírios, os vivo
os almejo, como
mastigo
engulo
meus mundos são digeríveis, são alimento

passo
paro
passo, paro
deito
cheiro
nevoando e, sem mais outros instrumentos, canto sozinha, mexendo os pés na minha melodia
espalhando as folhas secas
e criando pétalas

antes de me nascerem sonhos, criei por séculos e mais séculos
criei pétalas. enroladas e coloridas, escondidas dentro da minha planta.
desenhei minhas folhas como quem transporta sua vida para uma semente
como quem se projeta na espera

enrolei-me de tal modo que cresci sem perceberem. fiquei gigantesca e de noite, aumentava minha existência.
preenchi diversos planetas enquanto crescia, sem flor - sendo folha
e ninguém via que a vida me brotava

em um dia
abri
estiquei meus braços e disse:
o mundo é meu
peguei minhas flores, as arrumei em meus olhos
e disse:
perfumem meu mundo
arrumei a minha terra e disse:
nutra-me eternamente

o que vale é a paz cravada, é a vontade que escorre por entre lábios
são palavras! ditas!
Bramidos!- sussurrados

Tragam-me boas notícias.
Quem vos fala é quem vos flore.
Eu sou de pluma, sou doce, sou mansa
Sou mirante. Miragem não.
Sou criadora de pétalas. Riacho escondido.

Refresquem-se em mim, que eu vos rego com Deus.
Bons vocábulos.