16.11.08

Eis que há

Estamos em obra - na minha casa, eu digo.
E foi assim que descobri uma coisa: minha casa é casa de passarinho.
A parede não vai ser derrubada. Meu pai já avisou.
Mas pq?
Pq existe um ninho. Com filhotinhos que piam alto feito uma estrela!
A parede fica ali. Já está decido.
E há excursões. Para vê-los.
Levamos as visitas. Ficamos sentados do lado. Ouvindo.

Um ninho. A gente para a obra até eles crescerem.
Tomara que façam um ninho no meu peito e eu os leve pra sempre no meu coração.

O meu pai já disse: essa parede não derrubam.
Há um ninho.

10.11.08

Corre dentro

Chegue logo, ônibus.
Percorra o meu caminho.
Leve-me.

Embale
e
corra.

Corra comigo dentro, porque hoje é dia de comemoração e tenho pressa em chegar.
Quero braços, abraços.
Cheiro de alegria.
Corra logo, como quero.

Corra mundo. Estradas, cortem-se.
Avenidas, diminuam!
Quero braços e abraços. Cheiro de alegria.
Corra mundo, percorra suas emoções.
Lembre como é bom ter amigos e quão feliz é festejar.

7.11.08

O homem da colina

Quando não dizemos nada, há muito o que se fazer. Há de se sentir, de sofrer, morrer quantas vezes for necessário.

Havia um homem, ele era alto como a colina, distante como o luar. Imponente observava as redondezas.

Não falava, não gemia. Não era o que era, nem o que fosse.
Não falava, não gemia. Era tanta coisa que tornou-se em nada.

Imponente na colina. Homem cheio de dores, daqueles que chora sem lágrimas e ama sem gastar tempo.
Ele era vivo, mas ninguém percebera, era rebelde de uma revolução remota.
Houve uma era em que gemeu, chorou: gastando tempo,
. .amores,
. .revoluções
. .e ódio.
Era um homem de calças coloridas, blusa desgastada, sem medos ou rancor.
Houvera uma mulher insubmissa e forte. Ela era sua boca, ..seus sussuros,
..seu amor.
Com ela estava o seu coração.
Então ela se foi: fraca, prostrada.
Não há como expressar a morte de alguém tão nosso.

E assim se tornou um homem na colina: imponente, forte, sem gemidos ou pranto.

3.11.08

Um título com medo.. Ana Peluso

Medo. Medo de escrever e não sair nada. Não rimar condão com fada. Não confrontar a metáfora com a ênclise, atrás da porta que acabei de grafar. Medo do til ter medo de altura, e transformar meu ão em um monossilábico ao, com a redução do o a u, uma semivogal. Medo do i não aceitar o pingo, e ao lado de um zero, formar uma facção de códigos binários. Medo do ar não entrar pelo fonema, e este nunca sair nasal. Medo do texto atonal. Medo da falta de rimas métricas e assimétricas. Medo de sequestro de letras. Do papel em branco. Medo do silêncio do teclado. Do estado hiperbólico das sentenças. Morrer de medo. Estar aquém de um grande verso. Medo do reverso da poética. A metálica forma do medo. Medo de escrever plástico só por sua acepção. Medo das crases. Dos acentos circunflexos, por não existirem os circônflacos. Medo dos flancos do dois pontos. Medo do assombro sem exclamação. Medo do não com ponto final. Do mal uso da cedilha. Das filhas da letra ésse quando se unem aos verbos. Do que fazem com eles. Medo da interrogação. Medo de títulos e epígrafes. Medo de gafes. Medo da origem das palavras. Se nascem mortas de medo. Medo das línguas esquecidas serem as mesmas das quais me lembro. Medo de abuso do texto. Do limite de linhas. Dos rodapés e rubricas. Medo que o trema não seja nunca mais utilizado. E com ele vá-se embora toda a intriga. Medo da falta de idéias. Ou do extremo oposto. Algumas delas ressurgirem do esquecimento para o repetido uso. Medo do p e b mudos. Do hífen do contra-ataque da curva dramática de um texto. Do abandono entre parênteses das reticências por medo. Medo do travessão e da vírgula. Do narrador e da terceira pessoa. Do protagonista. Do epílogo. De uma frase sair à toa. Medo de assinar o final do texto. Da confissão do confuso. Do mal hábito de sentir tudo muito absurdo. E saltar. Soltar a folha cheia de medos por cima do resto do mundo.

2.11.08

A história de um olho só

Explodi.

E virei estilhaço de mim.
Eu tinha um corpo inteiro, uma vida completa, tudo nos conformes...mas é que tive uns probleminhas. Briga forte, daquelas de matar pra morrer, pois foi assim que voei pelos ares.
Não sei, nem imagino, onde meus pedaços foram parar.

Virei criatura informe. Estilhaço de corpo.

Virei olho. Podia ser dente, umbigo. Mas o estilhaço que se manteve grudado na minha alma foi o olho.
E como eu vejo coisas! Vejo o céu, o mar e tudo mais.
Admito, entretanto, que me vem um pensamento dentro da minha íris: de que adianta olho, se não pode sorrir com o que se vê? Porque eu sinto, sim, continuo sentindo. Olho sente, ora essa. Eu sinto falta do meu corpo, de outros corpos.

Procuro não reclamar. Até porque, se olho não tem boca, é justamente para não virar reclamão.
O ruim é que olho sozinho só sabe se expressar de um jeito: lacrimejando. Ando muito chorador, molhando todo meu globo ocular, ma falta de um rosto de verdade.
Muito choro pesa a alma. Estou vivendo assim meio encharcado dessa única função: olhar-chorar.
Até tem beleza no olho, porém, não nele sozinho. Ninguém fica feliz de encontrar um olho na areia da praia ou boiando num rio.

Aí o dilema.
O dilema de um olho só.

Percebe a ambiguidade. É proposital, porque agora só vivo disso mesmo...insinuações, olhares.
Nem cílio! Nem cílio tenho mais.
Estilhaço, como estava dizendo. Pedi a uma mão para escrevinhar o que eu exprimia estático. A mão emprestada sentia tudo pela vibração da retina. Porque piscar também não posso. Porque eu mesmo não pisco. Eu vivo de ser imóvel e contemplar.

Se eu soubesse que isso ia acontecer, pedia a Deus pernas. Pelo menos tinha a opção de me lançar no abismo, ainda que não seja muito adepto ao suicídio.

Mão cansada já. Ô vida essa.
Não vamos reclamar.
Bem, é isso. A gente se vê. Eu sou uma pessoa de um olho só. Castanho. Você vai me reconhecer.

O prazer foi meu.