29.7.13

Parte 6. Pulular

Fazia muito frio e eu só tinha uma lona. Mais uma neblina que me deixava embaçada. Meus ossos ficavam cada vez mais rijos, como se me perfurassem toda por dentro. A noite parecia infinita. Certa vez, li num livro de física algo sobre elétrons confinados e, me explicaram, havia um poço de potencial infinito, uma espécie de armadilha para que pudessem estuda-lo. Se sabem onde ele está, não sabem sua velocidade; se descobrem a velocidade, perdem onde ele está. Um salto quântico. Não sabemos de nada.

Eu me sentia num poço potencial infinito onde tudo paira e tudo passa. Memórias, realidades, expectativas. Tudo boiando dentro dos meus olhos, produzindo visões etéreas. Aquele barco me fazia boiar. E eu oscilava nas ondas, moribunda.

A lembrança de Marcos me fez perder esperanças, a vida ficou pingando no mar. Minha boca ficou seca. Não é o fim o que machuca mais, é o começo. As risadas, os véus que enfeitam a cama, o casaco vermelho comprado no Chile, o souvenir que ele me deu. Não sabia se era o frio que machucava meus pensamentos ou se foram eles que congelaram o mundo. A verdade é que o amor tem seus representantes e uma pessoa acaba por simboliza-lo. Ora, ora, e quando o amor diz que não te ama mais, algo quebra, um sino ecoa e uma parte de nós despenca.

Às vezes, amamos muito quem não nos fez feliz. Amamos o amor e não a pessoa. Às vezes, encontramos a pessoa, mas o amor é impronunciável, proibido.

Como por um milagre o dia tinha resolvido se escancarar num céu azul. E um broto de qualquer coisa germinava em mim. Resolvi sobreviver. Mas não importava o quanto eu quisesse, não sabia o que fazer para sair daquela situação. Continuava no barco, com pouca comida e sem direção. Arrumei minhas coisas mais uma vez. Cataloguei na minha mente o que eu tinha e o que me faltava. Passei o dia revirando a mim mesma, investigando minhas mãos, percebendo cada dobra, ruga, machucado. Escureceu cedo e se fez uma noite extremamente escura. A lua estava apenas um fiapo, pendurada no teto do mundo.

O nome dele era Felipe e tinha uma tatuagem no antebraço, cabelo enrolado e blusa da Itália. 

Eu olhava para um rapaz de blusa listrada, muito alto que estava longe. Olhava por cima das cabeças. A música em todos os ouvidos. Não ouvia nada, estática, decidindo o que fazer. Eu iria lá. Sim. Fechei os olhos. Pegaram minha mão. Mas não pude dar atenção. Ele estava se afastando cada vez mais. Uma voz no meu ouvido: Meu nome é Felipe. Não respondi. Minha mão albergada nas mãos de um intruso. Qual é seu nome? Fiz que não sabia. Oi, sou Felipe, qual é seu nome? Olhei. Ele sorriu. Esqueci de tudo. O que você faz? Sou professor. De quê? História. Para crianças? Ensino fundamental. Ele estava nervoso, suas mãos começaram a suar. Faço mestrado também. Estava cética. Qual sua linha de pesquisa? E ele falou por uns 15 minutos, sem que eu pudesse ouvir mais do que três palavras sequenciais. Relações de poder. Marx. Instituições. Com a mão direita segurava minha mão esquerda e com a mão esquerda segurava meu braço direito. Colou o rosto no meu e falava, tinha que gritar para superar todo o barulho. Pegava fôlego: eu sentia sua barriga, seus pulmões sorvendo ar. E, de repente, saiu daquele transe, se deu conta do quanto tinha se aproximado, apertou minha mão, largou meu braço. E pediu desculpas. Falei demais. Apertei a mão dele e disse: Não. Por que você veio até mim?, eu perguntei. Ele ficou surpreso, como se fosse impossível que eu não soubesse a resposta. Por que você veio até mim? Ele engoliu saliva, abriu e fechou a boca. Fez carinho nos meus dedos. Você linda. Sorri, encolhida, envergonhada. E ele me beijou. Disse que poderia ficar o dia inteiro me beijando. Disse que nós iríamos fazer um piquenique, que ele conhecia um lugar bom. Já sabia que frutas levar. E iria colocar uma canga e iria ficar mexendo no meu cabelo. Assim, beijando seu cílio assim. O dia inteiro, você acha uma boa ideia? Achava. Eu gostava da tatuagem. Um círculo com desenhos doidos lá dentro. Olhos castanhos. Cabelo grande. Nariz pequeno, tão sutil. Seu nariz é lindo. Você é bonito. Ele fez que não. Era sim. Beijei o nariz. Muito bonito, beijei a orelha. E o piquenique, você vai? Vou.

Um estrondo no casco do barco. Parecia que estavam socando todas as laterais. Não eram pedras. Algo caiu em cima de mim. Comecei a gritar. Joguei para longe. Abri bem meus olhos. E consegui ver mil pontos prateados que se agitavam no mar, era um cardume, ensandecido, pulando para fora da água. Pipoca de peixe. Fui ao encontro do que havia lançado para longe. Ainda agonizava. Eu tinha peixe, eu tinha cerveja. Festa.

24.7.13

Parte 5. Consulta


- O que há com você?
- Doutor, meu peito dói. E eu penso que é meu coração.
- Palpitação?
- Não, doutor. Quase nem palpita mais.
- E o que é então?
- Dá assim uma pontada e minha cabeça se estrangula e os pensamentos começam a girar, doutor.
- Alguma coisa mudou nos seus hábitos?
- Ah sim, doutor. Minha vida mudou muito.
- A alimentação?
- Não, doutor. Isso não.
- E como você se sente?
- Com um vazio no peito. Parece uma espécie de autocombustão, doutor. Parece que minha língua se esfarela e me dá um nó na garganta. Minha nuca fica formigando e meu rosto fica quente, doutor.
- Certo.
[pausa] 
- E desde quando isso vem acontecendo?
- Seis meses, um ano, doutor.
- Oito meses.
- Sim, oito meses amanhã, doutor.
- E como é essa dor? Onde ela começa?
- Começa quando sinto muita saudade, vejo uma foto, descubro sobre sua nova família ou coisa que o valha, doutor. Fico tonteada, minhas pernas ficam sem jeito e me dá náuseas. Minha vontade é vomitar tudo, mas parece que está preso dentro de mim, doutor.
- Essa não é minha especialidade.
- O doutor não é cardiologista?
- Sou.
-E não sabe qual é o meu problema, doutor?
- Sei.
- Então porque não me diz, doutor.
- Porque é caso raro e eu tenho medo de me precipitar.
- Mas e se eu morrer, doutor?
- É um risco.
- O que o doutor recomenda?
- Paciência.
- Marcos, você ainda me ama?
- Provavelmente não.
- O que há com você?
- É só tristeza, doutor.

[continua...]

15.7.13

Parte 4. Once but not anymore

Resolvi vasculhar o barco. Achei um abridor de latas, pensei que era um bom presságio e procurei atum, ervilhas, salsichas, mas fiquei só com o abridor mesmo. A boa notícia é que achei um saquinho de doces de Cosme e Damião. Tinha doce de abóbora, um doce azul de isopor, balinhas, uma prece impressa. Comi tudo. Menos a prece. Menos a prece. Achei também uma caixa de jujubas, balas de goma para dar e vender. Achei um energético de dois litros, que tinha um cavalo alado no rótulo. Dentro dos bancos havia um buraco, que servia como um baú. E lá tinha várias coisas úteis. Até camisinha. Resolvi abri-la. Soprei e fiz uma bola. Joguei no mar. Naquele dia tudo estava parado, não passava nem brisa e o mar estava ensimesmado, quieto. Fiquei observando a camisinha inflada se arrastar pelos ares.

Queria uma faca e uma lanterna de cabeça. Sempre quis uma lanterna de cabeça. Mas isso não tinha não. Achei uma lata preta, mas não conseguia abrir, era grande e pesada. A tampa estava presa, deixei de lado, magoada com o abridor que entortou na minha tentativa de abri-la. Maldição. Barco estranho.

Precisava tomar banho. Tirei as roupas e mergulhei, era para ser magnífico e libertador, mas bati a barriga na água e fez aquele estalo. Ri. Alto. A água estava límpida e refrescante. Era bom estar nua. Admito que tive medo de monstros marinhos, mas aguentei firme e me pus a nadar. Primeiro dando voltas ao redor do barco. Depois aqui e acolá. O energético tinha um poder notável. Tive vontade de fazer abdominais. Voltei para o barco e organizei meus pertences. Encontrei a bota com vômito dentro. Ideia estúpida. Joguei fora aquela gosma e pus a bota de molho. Água do mar limpa tudo. Catarro, ferida, evita acne e tira uruca.

O Osnir me contou que uma vez foi acampar com uns amigos e lá para o segundo dia eles foram na cidade comprar mais mantimentos. Ele ficaria na praia vigiando o equipamento de todo mundo. Ele disse que ficou lá uma semana sem que eles voltassem, a própria comida começando a acabar. Lá para o quarto dia decidiu que ficaria pelado. Achou uma pedra e ficava deitado nela, o dia todo, lagartando. Dormia pelado, acordava pelado, comia pelado, surfava pelado. Quando ele menos esperava, chegou uma mulher com bastão de carbono, GPS, mochila 68 litros, bota e viseira. Ele acordou, sentou na pedra e deu bom dia. A mulher olhou para ele apavorada, com terror nos olhos. Ele tapou o que pode e foi correndo de bunda presa até a barraca para colocar uma bermuda. Mas percebeu que a mulher não estava mais lá. Abortou a roupagem. Outros viajantes chegaram nos dias seguintes, sempre com bastões de carbono, entretanto, ele só dava bom dia e continuava esparramado na pedra. Um boato correu que tinha um tarado na praia, doido varrido, pelado na pedra. Era o Osnir. Entediado.

Eu gosto de poesia mas não sei nenhuma de cor. Uma lástima, cada vez que quero um verso, tenho que inventa-lo. Eu não consigo sair do passado, ainda vejo meus olhos cheios de lágrimas, com as mãos vazias, pedindo explicações que nunca virão. Enfrentei milhares de obstáculos, estraçalhei meus punhos lutando e você me disse: não venha mais. E eu fiquei flutuando fora do ar. O mundo me engoliu e você não me resgatou. Enquanto eu despencava, você fechou os olhos. Você me dilacerou e não há nada de novo que possa surgir daquelas memórias. Eu morri quando você me matou. E agora ressuscito pelo meu próprio milagre. Covarde. Que estúpido é o amor.

Parte 3. The grey

Eu acordei com os lábios secos, machucados na parte inferior. A temperatura estava amena, um vento gelado balbuciava qualquer coisa que eu não conseguia entender. O sol se punha no oeste. Eu deveria seguir o sol? O que ficava nessa direção? E se fosse a África, se fosse Portugal. O que existia à oeste de mim?

Das vezes que eu naveguei, meu rumo era algo visível, eu simplesmente seguia uma imagem. Dessa vez, o mundo ficou invisível aos meus olhos. É isso que a ignorância faz, apaga os caminhos. Se eu remasse, gastaria mais energia, mas ficar parada me parecia covardia e não queria conviver com esse símbolo. Era mais difícil agonizar assim. Decidi remar na direção oeste.

Meus pensamentos ficavam dançando. A sensação morna de que haviam me degolado e eu via lentamente o fim se arquitetar. Uma planta seca. morta. num vaso de cimento num apartamento empoeirado do Bairro de Fátima. Cigarros que eu nunca fumei. Revistas velhas com sorrisos afetados. Vi um cardume prateado, peixes altamente comestíveis. Queria que eles pulassem para dentro da minha boca. 

Estava escuro e eu não conseguia ver direito. Ele estava encostado na parede. Na praça. Um homem tocava violão e cantava, um amigo gordo era baixista. Muito bons. O cantor olhava para mim e eu olhava para o rapaz de blusa cinza. Todos sem conseguirem enxergar. O cantor cantava para mim e eu sorria para ambos. Porque queria a música. A blusa cinza sorriu para mim. Eu sorri de volta. O cantor gemeu a desilusão com o Roupa Nova. Ele tinha uma cabeça cheia de cabelos para o alto, dourados do sol. Fiz que sim com a cabeça e ele se aproximou. Ficou do meu lado na escada. Apertou os olhos. O cantor apelou para Frejat. Eu sou o Guto. Oi, Guto. Silencioso. Observava o movimento das pessoas. O cantor cantava de olhos fechados. Acabou o show. Eu me sentia com mil mãos e braços que eu não cabiam em nenhum lugar. Senta aqui, ele disse. Quer alguma bebida? Não - meu coração acelerou. Comprei para nós, não fica com vergonha, pode tomar, é nossa. Uma cerveja long neck. Já vi você na praia, você chegou na sexta. Já vi você indo comprar refrigerante. Até quando você fica? Eu fiquei surpresa. Ele descrevia minha roupa, o horário. Fico 15 dias. E ele sorriu. Deliciosamente, ele sorriu. Vou no banheiro. Fiquei esperando na praça, mas ele não voltava. Tive vontade de chorar, ali perto uma televisão expunha, impunemente, o show  do Exaltasamba. Você é a mulher do Guto?

Sou. Ele está machucado lá dentro. Entrei no bar como esposa determinada e vi a testa dele sangrando. O que houve? Sei lá, eu acordei muito cedo, a fila do banheiro estava demorando muito, sentei aqui para esperar, caí no sono, de repente senti uma pancada. Devo ter apagado mesmo, deixei a cabeça tombar e bati na ponta da mesa. Olhei assustada, tinha pouco sangue. Todos olhavam para ele. Eu sorri, mas ele ficou sério, balançava a cabeça. Desculpa. Não tem problema, eu pensei que você tinha me abandonado, mas só estava tirando uma soneca, né? Nossa, que mancada, demorou muito? Um pouco. Ele só olhava para o chão. Vou leva-la para sua casa. Segurei a mão dele e catei aqueles olhos castanhos. Ei, não faz mal. Isso acontece. Sorri, com os olhos, cílios, nariz. Até que a gente se desmontou numa gargalhada, aquele riso bem aberto. E começamos a elucubrar, inventando versões das mais variadas. Seguramos nossas bexigas, nos apoiamos nos joelhos, choramos. E aí ele me beijou. E foi como se eu tivesse beijado o mar, ele surfava meus lábios. Um tubarão beijando um peixinho. Abri os olhos e vi milhões de estrelas. Uma nuvem passava baixa, achamos aquilo bonito. Ele me disse que estava apaixonado. Disse que era de leão e que me apresentaria todos seus amigos. O cantor passou, no outro lado da calçada, arrastando o violão. Ô, Guto. Ve-lo vindo, com a bermuda meio arriada, queimado de sol, quente depois do dia de mar. 

Oeste.

[continua...]



11.7.13

2. Remadas

Acordei sem entender muito bem as coisas. Apito e capa de chuva jogados a esmo, como se uma explosão de objetos inesperados tivesse ocorrido. Minha cabeça latejava e o mar balançava demais. Desanimada ,rastejei até os dois remos, decidi que um era suficiente e me pus a remar. Depois de cinco minutos, tudo o que tinha conseguido era fazer uma circunferência, um percurso nada eficaz para quem tenta escapar de um oceano. Passei a oscilar, uma remada para esquerda, outra para direita. Finalmente. Remei e remei, por horas minutos, não sei explicar. Meu coração doía tanto que comecei a chorar. Minhas lágrimas eram salgadas e, naquele instante, percebi que o mar habitava em mim. 

E imaginei quantos crustáceos viviam em mim. As águas vivas bocejando, com seus tentáculos voando nas marés. Vermelhas. Azuis. Mortais. Ardentes caravelas. E imaginei os peixes. E as baleias que viviam aqui dentro. Dentro do meu coraçãozinho. Vivia tanta coisa bonita, por isso que eu chorava oceano, tadinha de mim que não tinha onde desaguar, chorava, remava. E dei por mim perdida, sem direção, remando só para não morrer num lugar só. Eu desfilava meu desespero entre as correntes. Tartarugas ficaram me olhando com pena. E eu não tinha um norte. Remei, como se meu esforço compensasse as dores. Remei, como se o movimento apagasse o passado. Remei como se a distância me afastasse de mim mesma. Mas, no fim das contas, lá estava eu, no canto de mim, despropositada e orgulhosa.

Exausta, joguei o remo fora. Lancei no mar meu instrumento de tortura. Arrependida, me lancei do barco, nadei alguns metros e trouxe de volta o remo. Subir no barco foi quase impossível. Não tinha forças para me  suspender e tinha medo que o barco virasse. Sentindo-me impotente, comecei a morder a água como uma louca. Por fim, como uma senhora de oitenta anos, levei meu corpo, minha alma e meus dentes vorazes para dentro do barco. O sol já estava ameno. Achei minha bolsa. Encontrei um pente, protetor labial, pulseira e escova de dente. Usei tudo ao mesmo tempo. Eu estava tão triste.

Lembrei do Pepe. Ele tinha levado um tiro no coração e nunca mais tinha se recuperado. Tentaram matar a mãe dele, mas atingiu ele também e arrebentou o coração de todo mundo. Ficou faltando um pedaço dentro do peito dele, por isso ele nunca tirava a camisa, tinha medo que vissem o abismo que tinha lá. Mas ninguém via e, vez por outra, recebia uns golpes na sua antiga ferida. Algumas pessoas são verdadeiras chagas na nossa vida. Vira e mexe voltam abrir e florescem a dor. Depois vão embora, cínicas e assustadas com as consequências de seus atos. Pepe vivia de coração roto por causa de Estela. Aqueles olhos esbugalhados fascinavam o pobre homem. E ele vivia como uma pipa, no céu, mas bem preso. Que carretel é esse que nos prende? Sempre me perguntei. O medo de não ter quem nos segure, talvez. Pepe resolveu que não amava Estela, resolveu que era livre e foi viajar. Morou fora por uns tempos, conheceu Isabel e estava forte e vigoroso. Mas Isabel degringolou com a distância. Estela batia na porta todos os dias, na esperança de entrar. E ele disse não. Disse não nunca mais. Disse que não era bobo. Disse que aquilo não se fazia. Disse que podia entrar só um pouquinho. Disse que o sofá era dela. Disse que o anel cabia bem no seu dedo. Disse que a amava e estava satisfeito da vida. Mas Isabel degringolou com sua canalhice e traiu o pobre homem. Manchou o rosto dele de lama e esfaqueou suas forças. Ele ficou sem ter para onde ir, ela era o seu destino. Ficou sem ter talheres. Só carregava um punhado de razão que não tinha coragem de compartilhar com ninguém. E quando lembro dessa estória lembro também que não sei que fim levou Pepe. 

Sempre invento um final feliz para ele. Ele já foi açougueiro rico em Paris, já teve filhos com boquinhas vermelhas e olhinhos brilhantes, já teve uma esposa suave e miúda, já encontrou uma ilha nova na África. Eu fico tentando explicar o porquê, dele ser bonito e merecer felicidade. Mas eu não sei como. É como aquela fruta deliciosa que desmancha na nossa boca e some. Ou como um beijo enquanto você dorme. É algo que você sente e escapa, é como se flores brotassem em espirais e pousassem em nossos ombros e a noite caísse e tudo descansasse.

Essas lembranças trouxeram o pôr-do-sol e as estrelas resolveram se espreguiçar diante de mim. Eu não sabia ler sol, e estrelas, sinais ou coisa que o valha. Como achar a saída diante de uma imensidão? Fiquei tentando inventar algum sentido e pedi para que as três Marias me orientassem. Nem Deus, nem as virgens. Onde eu vim parar?


[continua...]

10.7.13

1. Jornada nas estrelas

Quanto mar. Ela pôs as mãos na água. Olhou para os lados. Onde?

Não sabia como continuar os pensamentos, os problemas lhe pareciam insolúveis demais, insuportáveis. Sua mente assumiu um looping, onde as ideias reverberavam desconexas e iguais. Como um martelo, no seu golpe opaco. O céu assumiu um azul escandaloso e o sol resolveu impor todo seu calor e luminosidade. Sede. Lambeu suas mãos, salgadas. Não havia sombra, só um barco e ela. Onde?

Ela se inspecionou, não estava machucada. E como quem se distrai no meio do tiroteio, começou a admirar os dedos dos seus pés, a unha falhada do dedinho. As marcas do joelho. Viu seu umbigo, quis morar dentro dele. Trouxe a ponta dos cabelos até seu nariz, fez deles um bigode postiço. Abriu seus olhos para os pássaros, começou a mordiscar o cabelo, levemente, como quem come amendoim em dia de jogo de futebol. Onde?

Ela observava tudo com calma e pudor. Eu estava aterrorizada. Não sabia qual de nós era a farsante, eu ou ela. Às vezes, quando acontece um desastre, se institui dois reinos dentro de nós e observamos como terceiro aquilo que experimentamos em nossa própria pele. Uma espécie de desencarnação de si mesmo, quando não se consegue completar uma reação. E nós ficamos informes, como um feto que boia num vidro de formol: morto e conservado.

Finquei-me em mim mesma. Abandonei a terceira pessoa. Mas simplesmente não sabia o que fazer. Olhei ao redor em busca de algum objeto salvífico. Achei maçãs, biscoito de polvilho e umas sete cervejas. Nenhuma gota d'água. Mergulhei de novo a mão no mar e lambi. Salgada. Sempre salgada. Abri uma cerveja. Tomei. Sede. Outra. E outra. Ao final da última golada, estava enebriada. Sentia-me no Caribe Colombiano, capaz de discutir política internacional e lançar moda em Milão. Eu era fantástica. Aquele barco era meu melhor amigo e polvilho tinha gosto de bife acebolado. Achei as maçãs apetecíveis. Uma estava meio podre, era melhor começar por ela.

Meti a língua naquela textura marrom. Estava quente e tendencialmente pastosa. Como nas tortas, pensei. Como as tortas. Resolvi comer o cabo também. Só Deus sabia quando iria voltar para casa. Alguma enzima cuidaria da digestão. Cupins têm enzimas bacanas. Comem madeira e dá tudo certo. Serei um cupim selvagem, conclui.

Resolvi que deitaria no chão do barco abrindo meus braços. Projetando a forma de cruz, no convés à estibordo. Bombordo. Palavras estúpidas. Em forma de cruz, fechei as pernas, estiquei. Cri que desta maneira teria mais condições de Deus perceber a emergência na ronda dEle. Ronda matinal no paraíso. Achei um bom plano, mas meu rosto ardia. Fiquei de bruços. Joguei o cabelo no rosto e comecei a sentir o gosto da madeira. No tédio absoluto, comecei a raspar meus dentes no chão. Foi quando nada aconteceu. E nada aconteceu.

Morrer de tédio: esse era meu destino. Sentei de pernas cruzadas, sentindo um enjoo milenar. O maldito cabo da maçã. Era isso. Senti ânsia de vômito. Meus pensamentos se aceleraram: desespero de desperdiçar minha refeição. Avistei um pote gigante que tinha diversas quinquilharias dentro, uma bota de borracha, inclusive. Mas eu queria um pote menor. Nada. Apito, não. Capa de chuva. Boné. Isqueiro. Bolinha de tenis. Nailon. Não, não!

Vomitei na bota, decidida que estava de guardar meu lanchinho. Já vi minha cachorra comer coco e li numa revista qualquer que ainda tem nutrientes. Fica lá, um monte de nutriente. Vislumbrei que o vômito era um estoque, espumante nutricional.

Nossa, um cansaço milenar. Eu era muito antiga. Fundadora do planeta Terra. Adormeci. E sonhei com o Osnir. Quando eu o conheci, ele tinha uma lanterna na cabeça e tentava abrir uma lata de sardinha. Todos já estavam comendo suas batatas assadas, tapioca com manteiga, sopa de legumes imaginários e ele lá. Tentando abrir a lata. Uma faquinha ridícula que não cortaria nem uma lombriga. Ofereci a minha. Foi um sucesso. Ele era fotógrafo e hoje iria captar estrelas, era só deixar a máquina lá, de tempos em tempos tirava fotos. Sozinha. Clic Clic. E no final dava para fazer um filme. Eu achei tremendo. Ele era alto, tinha uma calça da Bolívia. Ficamos naquela conversa ritmo-maconha, que é quando pessoas sóbrias estão se paquerando em uma progressão lenta e relaxante.

Estava me decidindo se era importante ou não conhecer a face de um amante. A cabeça dele irradiava luz com aquela lanterna e era impossível olhar tamanha clarificência. Qual não foi meu espanto quando a lanterna dele se apagou e outra luz nos iluminou. Ele tinha olhos verdes, aquele maxilar marcante e um nariz digno. Um ar de super-homem com cabelos pretos. Minha amiga, que teve o mesmo vislumbre, fez ares de desmaio, virando os olhinhos e dando tapinhas imperceptíveis nos meus braços. Peixão. Joia rara. A lua estava cheia e ele foi mijar na beira do mar. Estávamos no saco de dormir dele que abria feito um cobertor. Moça bonita, ele me chamava assim. O beijo dele era quadrado, tinha assim um monte de quinas. Dentes quadrados. Barriga quadrada. E fotografava estrela. Vai entender.

Por fim, ele me convidou para ir na barraca dele, tentando me convencer que tinha uma tecnologia avançada. Eu achei graça. Tecnologia. Fiquei sorrindo no escuro e disse adeus. No outro dia tinha uma trilha de seis horas para fazer. Era uma travessia, Osnir, uma travessia. E eu estava partida.

[continua..]

2.7.13

Bundas rachadas

Ei, hei de colocar mega-hair, unhas de porcelana e lentes de contato cor de mel. Ó ou sou mulher forte, parida desde depois do ventre da minha mãe. E nada vai me aborrecer. Porque eu dou a volta por cima, se não tenho emprego, me depilo eu mesma. Se os homens se mostram nefastos, leio livro de auto-ajuda, romances em pocket book. Porque eu sei do meu valor, escovo os dentes diariamente, evito frituras e nunca traí namorado. Porque eu sei da minha vida. Eu tô bem. Super bem. Lido bem com aumento de peso, celulite e cabelos quebradiços. Bem mesmo. Já passei por coisa pior, naquela casa em Olaria com Gilberto. Só queria saber de fumar maconha e comer pão doce, aquele desgraçado. E eu cozinhando, passando, feito esparra. Desalmado, desgraçado, filho de uma égua. Mas eu não guardo rancor. Nem dele nem do Norberto. Quando ele anunciou que eu não tinha classe, elegância e fineza para conviver com os almofadinhas de Vila da Penha, que eu fiz? Gritei? Não. Xinguei? Não. Pedi clemência? Nada, eu falei: felicidades! Eu não desejo o mal de ninguém, fica lá arrotando sanduíche de subway do Largo do Bicão. Norberto foi assaltado, tempos depois, não quis dar a moto e levou uma facada nas bolas. Diz que arrancou uma, diz que ele usa prótese e isso virou maior tabu. E eu fico feliz com isso? Lógico que não, minha vontade é que todo homem tenha suas bolas de nascença.
Mas, como diz o ditado, né: ao que se faz,

Acredito numa certa justiça e quem arregaça nosso coração, sem legitimidade para tanto, merece se estrepar moderadamente, como medida socioeducativa. Porque pense comigo: de tanto dar a volta por cima, já estou rodeando as alturas por muito tempo. Gilberto foi a tatuagem de golfinho. Norberto, a estrela de Davi. Hilgiberto o dragão nas costas; Antônio Alberto os olhos de onça na panturrilha. Vai faltar pele pra tanta superação. Já cortei cabelo, pintei cabelo, saí com as amigas, chorei com as amigas, comi feito porca, fiquei anorexa: sorvete, chá verde, batata palha. A gente cansa. Eu nunca quis colocar silicone porque meu peito já é grande. Mas você me entende?

Mas minha história deu guinada. Gui-nada. Conheci o Berton, ele é francês, com ascentente em Itália, super bonzinho: só fala u-i, u-i, a gente se dá super bem. Mora aqui perto, em Cordovil, pegando a van 15 minutos da ponte verde de Vigário. A gente não briga, não conversa, nada dessas palhaçadas. Foragido ou não, eu gosto dele. E é isso que a gente leva dessa vida: o importante do amor, é amar.