10.7.13

1. Jornada nas estrelas

Quanto mar. Ela pôs as mãos na água. Olhou para os lados. Onde?

Não sabia como continuar os pensamentos, os problemas lhe pareciam insolúveis demais, insuportáveis. Sua mente assumiu um looping, onde as ideias reverberavam desconexas e iguais. Como um martelo, no seu golpe opaco. O céu assumiu um azul escandaloso e o sol resolveu impor todo seu calor e luminosidade. Sede. Lambeu suas mãos, salgadas. Não havia sombra, só um barco e ela. Onde?

Ela se inspecionou, não estava machucada. E como quem se distrai no meio do tiroteio, começou a admirar os dedos dos seus pés, a unha falhada do dedinho. As marcas do joelho. Viu seu umbigo, quis morar dentro dele. Trouxe a ponta dos cabelos até seu nariz, fez deles um bigode postiço. Abriu seus olhos para os pássaros, começou a mordiscar o cabelo, levemente, como quem come amendoim em dia de jogo de futebol. Onde?

Ela observava tudo com calma e pudor. Eu estava aterrorizada. Não sabia qual de nós era a farsante, eu ou ela. Às vezes, quando acontece um desastre, se institui dois reinos dentro de nós e observamos como terceiro aquilo que experimentamos em nossa própria pele. Uma espécie de desencarnação de si mesmo, quando não se consegue completar uma reação. E nós ficamos informes, como um feto que boia num vidro de formol: morto e conservado.

Finquei-me em mim mesma. Abandonei a terceira pessoa. Mas simplesmente não sabia o que fazer. Olhei ao redor em busca de algum objeto salvífico. Achei maçãs, biscoito de polvilho e umas sete cervejas. Nenhuma gota d'água. Mergulhei de novo a mão no mar e lambi. Salgada. Sempre salgada. Abri uma cerveja. Tomei. Sede. Outra. E outra. Ao final da última golada, estava enebriada. Sentia-me no Caribe Colombiano, capaz de discutir política internacional e lançar moda em Milão. Eu era fantástica. Aquele barco era meu melhor amigo e polvilho tinha gosto de bife acebolado. Achei as maçãs apetecíveis. Uma estava meio podre, era melhor começar por ela.

Meti a língua naquela textura marrom. Estava quente e tendencialmente pastosa. Como nas tortas, pensei. Como as tortas. Resolvi comer o cabo também. Só Deus sabia quando iria voltar para casa. Alguma enzima cuidaria da digestão. Cupins têm enzimas bacanas. Comem madeira e dá tudo certo. Serei um cupim selvagem, conclui.

Resolvi que deitaria no chão do barco abrindo meus braços. Projetando a forma de cruz, no convés à estibordo. Bombordo. Palavras estúpidas. Em forma de cruz, fechei as pernas, estiquei. Cri que desta maneira teria mais condições de Deus perceber a emergência na ronda dEle. Ronda matinal no paraíso. Achei um bom plano, mas meu rosto ardia. Fiquei de bruços. Joguei o cabelo no rosto e comecei a sentir o gosto da madeira. No tédio absoluto, comecei a raspar meus dentes no chão. Foi quando nada aconteceu. E nada aconteceu.

Morrer de tédio: esse era meu destino. Sentei de pernas cruzadas, sentindo um enjoo milenar. O maldito cabo da maçã. Era isso. Senti ânsia de vômito. Meus pensamentos se aceleraram: desespero de desperdiçar minha refeição. Avistei um pote gigante que tinha diversas quinquilharias dentro, uma bota de borracha, inclusive. Mas eu queria um pote menor. Nada. Apito, não. Capa de chuva. Boné. Isqueiro. Bolinha de tenis. Nailon. Não, não!

Vomitei na bota, decidida que estava de guardar meu lanchinho. Já vi minha cachorra comer coco e li numa revista qualquer que ainda tem nutrientes. Fica lá, um monte de nutriente. Vislumbrei que o vômito era um estoque, espumante nutricional.

Nossa, um cansaço milenar. Eu era muito antiga. Fundadora do planeta Terra. Adormeci. E sonhei com o Osnir. Quando eu o conheci, ele tinha uma lanterna na cabeça e tentava abrir uma lata de sardinha. Todos já estavam comendo suas batatas assadas, tapioca com manteiga, sopa de legumes imaginários e ele lá. Tentando abrir a lata. Uma faquinha ridícula que não cortaria nem uma lombriga. Ofereci a minha. Foi um sucesso. Ele era fotógrafo e hoje iria captar estrelas, era só deixar a máquina lá, de tempos em tempos tirava fotos. Sozinha. Clic Clic. E no final dava para fazer um filme. Eu achei tremendo. Ele era alto, tinha uma calça da Bolívia. Ficamos naquela conversa ritmo-maconha, que é quando pessoas sóbrias estão se paquerando em uma progressão lenta e relaxante.

Estava me decidindo se era importante ou não conhecer a face de um amante. A cabeça dele irradiava luz com aquela lanterna e era impossível olhar tamanha clarificência. Qual não foi meu espanto quando a lanterna dele se apagou e outra luz nos iluminou. Ele tinha olhos verdes, aquele maxilar marcante e um nariz digno. Um ar de super-homem com cabelos pretos. Minha amiga, que teve o mesmo vislumbre, fez ares de desmaio, virando os olhinhos e dando tapinhas imperceptíveis nos meus braços. Peixão. Joia rara. A lua estava cheia e ele foi mijar na beira do mar. Estávamos no saco de dormir dele que abria feito um cobertor. Moça bonita, ele me chamava assim. O beijo dele era quadrado, tinha assim um monte de quinas. Dentes quadrados. Barriga quadrada. E fotografava estrela. Vai entender.

Por fim, ele me convidou para ir na barraca dele, tentando me convencer que tinha uma tecnologia avançada. Eu achei graça. Tecnologia. Fiquei sorrindo no escuro e disse adeus. No outro dia tinha uma trilha de seis horas para fazer. Era uma travessia, Osnir, uma travessia. E eu estava partida.

[continua..]

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