15.7.13

Parte 4. Once but not anymore

Resolvi vasculhar o barco. Achei um abridor de latas, pensei que era um bom presságio e procurei atum, ervilhas, salsichas, mas fiquei só com o abridor mesmo. A boa notícia é que achei um saquinho de doces de Cosme e Damião. Tinha doce de abóbora, um doce azul de isopor, balinhas, uma prece impressa. Comi tudo. Menos a prece. Menos a prece. Achei também uma caixa de jujubas, balas de goma para dar e vender. Achei um energético de dois litros, que tinha um cavalo alado no rótulo. Dentro dos bancos havia um buraco, que servia como um baú. E lá tinha várias coisas úteis. Até camisinha. Resolvi abri-la. Soprei e fiz uma bola. Joguei no mar. Naquele dia tudo estava parado, não passava nem brisa e o mar estava ensimesmado, quieto. Fiquei observando a camisinha inflada se arrastar pelos ares.

Queria uma faca e uma lanterna de cabeça. Sempre quis uma lanterna de cabeça. Mas isso não tinha não. Achei uma lata preta, mas não conseguia abrir, era grande e pesada. A tampa estava presa, deixei de lado, magoada com o abridor que entortou na minha tentativa de abri-la. Maldição. Barco estranho.

Precisava tomar banho. Tirei as roupas e mergulhei, era para ser magnífico e libertador, mas bati a barriga na água e fez aquele estalo. Ri. Alto. A água estava límpida e refrescante. Era bom estar nua. Admito que tive medo de monstros marinhos, mas aguentei firme e me pus a nadar. Primeiro dando voltas ao redor do barco. Depois aqui e acolá. O energético tinha um poder notável. Tive vontade de fazer abdominais. Voltei para o barco e organizei meus pertences. Encontrei a bota com vômito dentro. Ideia estúpida. Joguei fora aquela gosma e pus a bota de molho. Água do mar limpa tudo. Catarro, ferida, evita acne e tira uruca.

O Osnir me contou que uma vez foi acampar com uns amigos e lá para o segundo dia eles foram na cidade comprar mais mantimentos. Ele ficaria na praia vigiando o equipamento de todo mundo. Ele disse que ficou lá uma semana sem que eles voltassem, a própria comida começando a acabar. Lá para o quarto dia decidiu que ficaria pelado. Achou uma pedra e ficava deitado nela, o dia todo, lagartando. Dormia pelado, acordava pelado, comia pelado, surfava pelado. Quando ele menos esperava, chegou uma mulher com bastão de carbono, GPS, mochila 68 litros, bota e viseira. Ele acordou, sentou na pedra e deu bom dia. A mulher olhou para ele apavorada, com terror nos olhos. Ele tapou o que pode e foi correndo de bunda presa até a barraca para colocar uma bermuda. Mas percebeu que a mulher não estava mais lá. Abortou a roupagem. Outros viajantes chegaram nos dias seguintes, sempre com bastões de carbono, entretanto, ele só dava bom dia e continuava esparramado na pedra. Um boato correu que tinha um tarado na praia, doido varrido, pelado na pedra. Era o Osnir. Entediado.

Eu gosto de poesia mas não sei nenhuma de cor. Uma lástima, cada vez que quero um verso, tenho que inventa-lo. Eu não consigo sair do passado, ainda vejo meus olhos cheios de lágrimas, com as mãos vazias, pedindo explicações que nunca virão. Enfrentei milhares de obstáculos, estraçalhei meus punhos lutando e você me disse: não venha mais. E eu fiquei flutuando fora do ar. O mundo me engoliu e você não me resgatou. Enquanto eu despencava, você fechou os olhos. Você me dilacerou e não há nada de novo que possa surgir daquelas memórias. Eu morri quando você me matou. E agora ressuscito pelo meu próprio milagre. Covarde. Que estúpido é o amor.

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