24.4.09

Grude

No dia em que se morre a desgraça, há um lamúrio de tristeza. Todos os pensamentos exitam em afobar-se. Até o coração trocar seus trajes, demora. Muito tempo até que se reacendam os olhos. Acostumados com a marcha fúnebre de mortes alheias.

Ontem apunhalei meia dúzia de desesperanças. Suei, sujei-me com seus dejetos.
Olhei para o pessimismo restante, ameacei-o.
Bradei dentro do meu peito: "venha e lhe mato de alegria".

Quando morre algum sonho em mim, eu enterro. Rego e espero nascer a árvore. E assim, ainda morto, me serve de alimento.
Quando sou quem morre, espero pela minha ressurreição. Afoita, revivo, renasço.
Compactuei com Deus que seremos felizes ainda que a felicidade fuja. Não nos amofinaremos por esperar boas circunstâncias. Combinamos de navegar juntos. E é tanto céu que existe nEle, que morro de eternidade.

Assusta demais. Sorriso fácil. Gargalhadas esparramadas pelo mundo.
Quase libertino. Quase infame.
Se pactos pudessem ser quebrados. Se não tivesse sangue envolvido no negócio. Se o contrato não fosse tão vinculante. Até que eu tentaria. Me apegar ao desespero, ensaiar cenas deselegantes.

Porém, é caso perdido. É assunto encerrado: a paz grudou em mim e agora vivo embebida em bondade.

20.4.09

O conto do amor arruinado

Minhas pernas se puseram a andar por entre meus pensamentos. Subitamente percebi um caminho de dor e tristeza, segui-o. Eis que foi cheio de temor que trilhei o primeiro trecho. Depois, a idéia de que era esse o meu destino me assaltou e levou consigo todo desespero.

Agora percebo que o caminho é infinito e a linha de chegada é o lugar de onde vim.
Fico com a resolução de mudar meu passado errante, um passatempo mental de ser feliz.

Agora, mais um vez, agora conto meu conto.
Arruinado pelo amor, por certo que foi.

Imagine você os olhos onde se plantam bananeiras. Olhos cor de folha seca. Marrom-terra-folha-seca.
Imagine você que eles brilhem. Seria estarrecedor se não fosse enebriante. Talvez seja ambas as coisas. A imagem dos olhos, digo.

Os donos, os olhos, se alocaram num corpo. Corpo de Esméria. Admito que é com profundo pavor e depressão que escrevo. Não tenho saudades, só distância.
Esméria era má de tanto ser boa. Não era possível confiar nela. Boa não era, por certo. Era boa de tão má.

O mal se deu - vamos ao conto?!- quando percebi que Esméria comia esperança.

É boba a estória, só conto porque tudo aqui está perdido. É um conto fracassado.

Um dia, vi Esméria mastigando algo, algo que de doce tinha doçura. Ela mastigava o invisível e escorria riso por entre seus lábios.
Comecei a desconfiar da menina. Quem é que come uma coisa boa e finita...que faz isso: acaba com tudo de bom? Come a comida por mais que se acabe...e depois se ri?

Maldade.

Esméria comia palavras minhas, recitadas em frente ao seu nariz enquanto meus olhos fitavam sua boca. Conforme eu falava, Esméria repetia e as engolia. Depois se ria, risonha, feliz, trêmula. Escorria, escoava...rio no queixo, gotas no chão. Maldade.

Se quisesse palavras para engolir, que procurasse outro.
Foi inútil retroceder. Esméria deixou brotar o amor, engolido na terra do peito. Gerou as folhas, tronco. Os frutos.
Ela toda virou árvore. Suas pernas raízes.

Se Esméria quisesse. Maldade.
Era tão bonito ver Esméria. Sua paz tão notória.

Se quisesse, a tal da Esméria, ser feliz...que procurasse outro.

E assim que acaba o conto: Esméria morreu de saudade e eu prossegui meu caminho.

17.4.09

O Dia do Cospe Pérolas

Num mundo de monstros encantados, vi uma gaivota que cantava ao relento.
A gaivota sonhava ser peixe e o peixe sonhava ser mar. Nesse apego em sonhar ser o que não se é, os dias passavam límpidos. Dia após dia desastres impressionantes.

Nunca esquecerei do "Dia do cospe pérolas". Foi o dia em que conchas guardiãs do tesouro se enjoaram com o balanço do mar e todas vomitaram. Pérolas e mais pérolas nadando pelos sete mares. Até surpreender-se era perigoso.

Conta-se que certa tartaruga, boquiaberta com a situação, acabou engolindo três pérolas e morreu. Entaladamente preciosa. Pobre ou rica, fato é que aquele casco não será mais habitado.

A maioria ficou com nojo. Vômito de conchas, todos entoavam.

Ninguém mergulhou por aqueles dias. Não havia quem achasse aquelas dádivas.
Minto, uma pessoa mergulhou. Um pescador velho e alcóolatra. Mas não conta porque não se conta os mortos dentre os vivos. O pescador mergulhou em alto-mar. Ao abrir os olhos e ver aquela corrente de pérolas, achou graça. Pensou que estava sonhando, puxou o ar pelas narinas. Três ou quatro redondinhas lhe entraram pelo nariz. Lá se foi. Entre o sonho, embriaguez e entupimento. Morreu feliz.
Fora ele, ninguém de humano soube do fenômeno.

As conchas, desprestigiadas e vazias, se abriram e abandoram a missão de ser par. Correram, nadaram e se lançaram na beira do mar.
Uma menina chamada Alice juntou oito baldes num só dia, produziu vários colares de concha e hoje vive num luxuoso hotel com a renda.

Curioso foi o fim das pérolas: cairam num abismo e o encheram até a boca. Os peixes as tratam como pedras e elas vivem a redondilhar.
São felizes e viverão para sempre no mar. Preenchedoras de abismos e matadoras de quem estranha essa história.

Futurando

Ainda é amor pequeno
daqueles que nascem com preguiça e prudência.

Ainda é bem semente, mamão verde, mingau em pó.
Falta aquecer, borbulhar, mudar de cor e de gosto.
Falta o céu e a terra reconhecerem o ar.
Falta as estrelas furarem nuvens nubladas.
Descortinar. Desenvolver. Disseminar.

E quando as bocas forem par e os olhos quartetos. Quando o hálito for do outro.
Teremos mais alimento. Faremos banquetes de alegria e serviremos as melhores risadas.
Vai ser bom. Tênue e puro.

14.4.09

Mestre-Deus

Passeando por entre palavras ditosas, vi Deus estampado em parábolas. Rodopiei meus olhos por entre vocábulos e achei alimento e achei bondade.
Percebi Jesus-Deus e enxerguei sem ver nada. Não por ser escuro, mas porque luz demais lustra a alma e faz tremilicar. E nesse tremilique de espírito: chamado de temor, tremor; eis que meu mundo girou com um sentido a mais.
Sentido de quem dorme, mas não vacila; de quem cansa, mas não pára. Segurança de quem morre, mas ressurge. E por mais que a Cristandade ficasse perplexa, o próprio Cristo não deixou de ser aborrecido, cansado e abatido. E o próprio Jesus foi traído, rasgado e humilhado. E o próprio Emanuel se compadeceu de quem o extirpava do coração.
Deus é assim mesmo: se ira com imensa compaixão e mata o celestial para salvar-nos, profanos. Porque Deus se joga na lama e permanece majestoso e puro. Faz brilhar esperança nos desgraçados. Deus é todo cheio de páscoa e natal. Cheio de remissão e oportunidades.
Deus é um tanto extravagante.

10.4.09

Peito de frango
Olho de garça
Nariz de morcego
Cauda de troll

Comida dos vizinhos, cheiro bom. Quero comê-los.

9.4.09

Mortidão

A morte veio ter comigo. Aborrecida, mandei que tomasse conta da sua própria vida. A morte, coitada, sem saber como existir, arregalou os olhos e encolheu os ombros.

- E como? - a morte soou.
- Não sei bem. A gente vive sem saber como funciona. Uma espécie de amostra grátis por tempo indefinido.
- E se não gostar, tem como trocar? - a morte questionou.
- Tem não. Quer dizer, tem. Trocar não, mas tem como morrer.
- E só? - perguntou mortífera.
- Também é possível dar guinada.
- Como é guinada? - perguntou, perguntando a morte.
- Pintar cabelo, emagrecer. Correr, virar gostosa. Comprar roupa. Arrumar namorado careca e dizer que nunca esteve mais feliz.
- E serve para quê? - morte.
- Para os outros. Para esfregar vida na cara deles.
- E sobra algo para pessoa? - perguntou já se sabe quem.
- Contas, trabalho. Salto alto. Calo e peruca. Status!
- E status de quê?
- Status de quem vive.

A morte pensava que ninguém morria vivendo. Na verdade, ficou extasiada de felicidade, descobriu-se útil e presente na vida de tantos.
Morte amiga e cotidiana. Morte de todos os dias.