23.12.13

Atropelamento

Fecho os olhos e sou capaz de beija-lo novamente. Morno, braços exitantes. A gente se ama, mas ainda não sabe o que fazer com esse amor. Mas. O tempo passa, e a gente continua sem saber. O tempo passa e a gente continua. passatempo. Amando cada um no seu canto, negando ausência, expurgando as emoções.

Não sei se há amor suficiente, não sei se o amor sobrepujou. Não sei mais se amar r.existe.

É inegável que o seu sorriso ainda me faz calor. E que nossas memórias ainda me são felizes. Mas a gente não resiste a nós mesmos. nós emaranhados na nossa garganta, sufocando a esperança de sermos unidos. mesmo. rimos, suspiramos, prometemos tudo o que tínhamos, mas a profecia falhou e a redenção tarda em vir. correlacionamos as lacunas, substituindo vazios por outros.

A gente tentou, nossa humanidade nunca mais será a mesma. Se fomos vencidos, não foi por falta de lutar.

16.12.13

Esperiência


Tomei cachaça. Tomei cachaça com cerveja. Olhei o limão e lembrei de 4 ex-namorados. Peguei um copo de vidro. Coloquei gelo. Espremi limão. Matei-os esmagados. Enfiei-nariz-bocalábio no copo: estiquei a língua. Feitiçaria. Eu toda bruxa alácasei uma vodka. Achei hortelã. Achei de bom tom. Achei água potável, bom tom. Achei 51, que venha. Cachaça caseira: requinte. Gelo muito gelo. Mirei minha própria boca, olhei pro teto e sorvi lentamente minha obra-prima. Depois, como quem guarda em si todos os mistérios da Terra, sentei numa cadeira qualquer e fiz pose de bochechas de anão velho: caídas, sonolentas, macias e rosadas.

Conversinhas sobre economia. A mãe de alguém era chique, o pai de alguém estava vindo. Fulano de tal era corno, a mulher da esquina operou as varizes. Blá blá blá blá, casaco barato, buraco na estrada, um filho sem olho. Sem olho?

Achei aquilo um desrespeito, resolvi ir pra casa.
- Eu te levo!
- Eu te busco!
- Eu te pego!
Homens malditos.

Mas. Eu carregava toda a meiguice do mundo, aquele ranço que só um porre promove, aquela língua que gruda nos cantos da boca, lá no céu, de repente, se enrola (profere) e se cansa. O corno perdeu o olho, coitado. Cheguei em casa relativamente sozinha. E lembrei do Agenor, ele tinha um queixo quadrado e a unha do indicador parecia que iria chegar nas costas do dedo. Ele me explicou que foi um acidente com um cachorro, que tirou o tampão fora e aí a unha ficou assim: envoltada. Seja como for, Agenor e eu tivemos um lance legal e um papo gostoso. Ele trabalhava numa mineradora e se gabava de já ter visto muito cobre na vida. Ele gostava de música de cowboy e tinha um sorriso daquele que faz perdoar pecados. E cada vez que ele ria, eu orava: amém.

O Agenor tinha assim uns olhos pequenos, daqueles que somem na cara, castanhos, alegrinhos. A voz dele era rouca. Ele era todo feliz, mas não me beijava nunca porque dizia que se beijasse ele iria se apaixonar e se se apaixonasse, não iria aguentar. Como eu queria que ele aguentasse, eu fazia que sim, coração palpitando destrambelhado. Aí ele sorria: perdoados estão vossos pecados. Um tempo depois ele me disse até que me amava, mas estava acostumado a amar outra mulher. Por questão de hábito, não ficamos mesmo juntos.

Encostando nessas memórias, fui olhar pela janela. Romântica, lenta e perigosa, avistei a casa do vizinho. Eu morava no alto. E ele era um velho tarado que ficava lambendo os próprios beiços. Um enjoo e uma ideia espetacular: vou vomitar no telhado dele. Abri bem a janela e invoquei os meus drinks. Mas só dei uma golfadinha. Quase que só escorreu pela parede. Que frustração. E veio de novo. Aquela onda. Ah, coisa linda vomitar sorrindo. Afastei umas mechas de cabelo, que voavam com o frescor da noite. Estava preparando mais uma investida quando minha mãe me pegou, já de pijamas, vomitando no telhado do Seu Otávio. Doida! Pegou um balde. Vomita aqui! Não quero. Anda, vai. Não. E me neguei. Mas ela enganou os meus sentidos e colocou o balde na direção do meu alvo. A partir daí só golfei. Nunca mais fui a mesma. Depois ainda escovei os dentes, higienizada e mansa.


O Seu Otávio acordou todo mundo no outro dia dizendo que o gato dele estava morrendo. Que tinha vomitado tudo, que até agora pingava e que tinha folhinhas e muitas tranqueiras. O bicho comeu planta venenosa ou cachorro-quente estragado. Está pelas últimas. O gato ficou lá, gordo, recebendo afagos fúnebres. Eu não tive dor de cabeça nem remorsos. Minha irmã disse que eu não tenho auto-estima, mas a partir de agora resolvo tudo chamando o Raul. Você que não me pague o que me deve.

20.11.13

n doble

Fiquei sem imaginar o que sentir. Quando uma pessoa morre, acontece uma mutilação na gente. O mundo gira em mil imagens e a gente se aconchega em algumas delas: memórias boas, risadas abertas, estórias loucas. Para preencher o vazio. Aí os sobreviventes se aproximam, rosto inchado do choro, alma doída. E a gente abraça, chora e perde muita esperança. Quando uma pessoa morre a gente perde muita esperança. Nos filhos que não nasceram, na velhice não gozada. O passado se torna morada dos nossos queridos e prosseguimos trôpegos. Vacilamos na nossa própria existência.

Eu amo muita gente. Secretamente costuro meu coração à felicidade das pessoas que moram dentro dos meus olhos. Não haverá mais voz. Nemcanto.
Por agora:
A gente se abraça, nus chora e perde-se na pouca esperança.

Ah, Deus sorva-nos com seu paraíso e amor. Esse mundo aqui anda sem cura.

27.10.13

Assunção

 Num mundo em que juras de amor são proibidas, faço juras de todos os meus desejos. Em que o eterno foi banido, comprometo todos os meus instantes.

Talvez seja o tempo de assumir possibilidades e deixar de se encasquetar com a certeza. Num movimento fluido  de se abandonar. E recriar-se no próximo passo. Como se o passado tombasse e o presente descansasse e pudéssemos andar livremente. Sem o peso insustentável das feridas. Sem o vislumbre cíclico das chagas. Apenas um passo. Uma nuvem e o horizonte. Nem voo, nem corrida. Nem arrastar-se. Como quem finca a travessia, sem saber por onde vai passar.


Vamos indo, todos nós: fantasmas: vivos ou mortos. Lamber a vida.

9.10.13

Morricenta

Foi na véspera de Natal que descobri que minha infância tinha morrido. Por um desastre qualquer, houve uma cisão e, me explicaram, eu deveria ser boa. Eu já não era boa o bastante. Não. Mais.

Uma fila de visitas, abraços. Desolações. E batiam levemente na minha cabeça, sem olhar nos meus olhos. Mãos firmes no meu queixo e levantavam-me o rosto: seja uma boa menina, ajude seu pai e seus irmãos.

-Mãe?

Melhora logo.

Temos que ser bons o bastante. E fomos. Suportamos as dores mais trucidantes. Uma sensação de estrangulamento constante, que nunca mata, por mais que se peça.

Fui boa. Não chore! Não choro. Dar leveza aos destroços que se amontoavam. Salvar sua alma da desesperança.

Inaugurei uma nova existência sem reclamar de tragédias, banidora de tristeza: e caminhava. Dia após dia. Arrastando tudo com uma força sobrehumana. Havia um abrigo e era para lá que nos levava. Morri de fome, morri de sede. Morri de tanto gritar. Morri por quatro golpes fatais. Morri por palavras mal proferidas. E achei abrigos dos mais diversos. Achei paraísos, destruí oito infernos.

Tire a mão do meu queixo e não me peça para ser boa. Nunca mais.

E de tanto prosseguir: tornei-me forte, indestrutível e grave.

Ser boa é maturar-se e só cabe a mim. Só cabe a mim existir.

8.9.13

Souer

Veja bem. Os mundos se fundiram e eu sonho um passado com novos personagens. Como se uma caçada descontrolada se desenrolasse atrás de mim. E cada passo fosse uma fuga, ínfima, infinita. Onde tudo me persegue, mas nada me alcança.

Eu sigo correndo, atropelando o vazio, percorrendo paisagens. Um medo me estrangula a garganta. Uma tonteira: um veneno qualquer que invade meus olhos. E minha boca se abre, meu corpo arfa, minha saliva pendente. Caio de joelhos, em uma terra de lama. O mundo gira, para, e as emoções desfilam vagarosamente, mostrando dentes e perfume. Intangíveis. Irrenunciáveis.

Minha boca está dormente e você diz que é cocaína. Pede desculpas. Eu fico confusa. Vamos para outro lugar. Vamos. Minha boca lateja. O que é cocaína? O mundo  fica piscando enquanto eu me equilibro nos meus passos. Muita gente em um espaço tão curto. Você some. Eu não me importo. Quer maconha? Não. Vamos para outro lugar? Vamos. Onde? Não sei. Minha boca está estranha. Logo passa. Não entendo o que você fala, você inventa sons que não estão na minha linguagem. Mas minhas mãos estão na sua nuca. Ambas apoiadas em sua altura.

Pegue suas coisas. Não sei da minha bolsa. Onde está sua identidade? Perdi, você tem dinheiro? Tenho. Mas vou pegar mais. Onde? No banco. Está tarde. No caminho. Táxi. Queremos um quarto. Cruzamos uma ponte, as luzes são amareladas, o caminho parece percorrer a mim mesma. Aqui está senhorita. Desço do carro, mas não há vagas. Queremos um quarto. Mas não há. Há um congresso de metalúrgicos na cidade. E todos dormem, entediados, ocupando nossas vagas. Queremos um quarto. Aqui há, mas é caro. Caro quanto? Ele paga. Ele paga tudo, dá moedas para o táxi. Eu abro sua carteira. Preencho fichas, invento nomes. Não tenho documentos. Sem problemas. Aqui a chave. Queremos um quarto.

E seus lábios se apertam. Um quarto bege com colcha marrom. Um abajur fracassado, toalhas limpas nos meus braços. Sua pressa acabou e você passa a matutar. A investigar meu pescoço, a desfilar sua força. Acordo nua e você com uma cueca furada, um rasgo junto ao elástico. Precisamos ir. Você com os olhos cerrados, pele queimada do sol, pulseiras das mais diversas. Seu cabelo reluz. Acorda. Não. Acorda. Hm. Senta-se na cama. Abre um mapa. E me aponta uma lavanderia. Confere o dinheiro. Não roubei nada. Mas pensei em abandona-lo. Mas nunca aprendi isso.

Depois de um tempo lembra de mim, pega minha mão e beija. O taxista sorri. Estamos voltando. Mas você não me ama. Não vou com você até o fim. Despeço-me com um beijo seco, estéril. Alívio. Dá sua chegada e sua partida. Sei do seu nome e da sua finitude. Que assim seja.

29.7.13

Parte 6. Pulular

Fazia muito frio e eu só tinha uma lona. Mais uma neblina que me deixava embaçada. Meus ossos ficavam cada vez mais rijos, como se me perfurassem toda por dentro. A noite parecia infinita. Certa vez, li num livro de física algo sobre elétrons confinados e, me explicaram, havia um poço de potencial infinito, uma espécie de armadilha para que pudessem estuda-lo. Se sabem onde ele está, não sabem sua velocidade; se descobrem a velocidade, perdem onde ele está. Um salto quântico. Não sabemos de nada.

Eu me sentia num poço potencial infinito onde tudo paira e tudo passa. Memórias, realidades, expectativas. Tudo boiando dentro dos meus olhos, produzindo visões etéreas. Aquele barco me fazia boiar. E eu oscilava nas ondas, moribunda.

A lembrança de Marcos me fez perder esperanças, a vida ficou pingando no mar. Minha boca ficou seca. Não é o fim o que machuca mais, é o começo. As risadas, os véus que enfeitam a cama, o casaco vermelho comprado no Chile, o souvenir que ele me deu. Não sabia se era o frio que machucava meus pensamentos ou se foram eles que congelaram o mundo. A verdade é que o amor tem seus representantes e uma pessoa acaba por simboliza-lo. Ora, ora, e quando o amor diz que não te ama mais, algo quebra, um sino ecoa e uma parte de nós despenca.

Às vezes, amamos muito quem não nos fez feliz. Amamos o amor e não a pessoa. Às vezes, encontramos a pessoa, mas o amor é impronunciável, proibido.

Como por um milagre o dia tinha resolvido se escancarar num céu azul. E um broto de qualquer coisa germinava em mim. Resolvi sobreviver. Mas não importava o quanto eu quisesse, não sabia o que fazer para sair daquela situação. Continuava no barco, com pouca comida e sem direção. Arrumei minhas coisas mais uma vez. Cataloguei na minha mente o que eu tinha e o que me faltava. Passei o dia revirando a mim mesma, investigando minhas mãos, percebendo cada dobra, ruga, machucado. Escureceu cedo e se fez uma noite extremamente escura. A lua estava apenas um fiapo, pendurada no teto do mundo.

O nome dele era Felipe e tinha uma tatuagem no antebraço, cabelo enrolado e blusa da Itália. 

Eu olhava para um rapaz de blusa listrada, muito alto que estava longe. Olhava por cima das cabeças. A música em todos os ouvidos. Não ouvia nada, estática, decidindo o que fazer. Eu iria lá. Sim. Fechei os olhos. Pegaram minha mão. Mas não pude dar atenção. Ele estava se afastando cada vez mais. Uma voz no meu ouvido: Meu nome é Felipe. Não respondi. Minha mão albergada nas mãos de um intruso. Qual é seu nome? Fiz que não sabia. Oi, sou Felipe, qual é seu nome? Olhei. Ele sorriu. Esqueci de tudo. O que você faz? Sou professor. De quê? História. Para crianças? Ensino fundamental. Ele estava nervoso, suas mãos começaram a suar. Faço mestrado também. Estava cética. Qual sua linha de pesquisa? E ele falou por uns 15 minutos, sem que eu pudesse ouvir mais do que três palavras sequenciais. Relações de poder. Marx. Instituições. Com a mão direita segurava minha mão esquerda e com a mão esquerda segurava meu braço direito. Colou o rosto no meu e falava, tinha que gritar para superar todo o barulho. Pegava fôlego: eu sentia sua barriga, seus pulmões sorvendo ar. E, de repente, saiu daquele transe, se deu conta do quanto tinha se aproximado, apertou minha mão, largou meu braço. E pediu desculpas. Falei demais. Apertei a mão dele e disse: Não. Por que você veio até mim?, eu perguntei. Ele ficou surpreso, como se fosse impossível que eu não soubesse a resposta. Por que você veio até mim? Ele engoliu saliva, abriu e fechou a boca. Fez carinho nos meus dedos. Você linda. Sorri, encolhida, envergonhada. E ele me beijou. Disse que poderia ficar o dia inteiro me beijando. Disse que nós iríamos fazer um piquenique, que ele conhecia um lugar bom. Já sabia que frutas levar. E iria colocar uma canga e iria ficar mexendo no meu cabelo. Assim, beijando seu cílio assim. O dia inteiro, você acha uma boa ideia? Achava. Eu gostava da tatuagem. Um círculo com desenhos doidos lá dentro. Olhos castanhos. Cabelo grande. Nariz pequeno, tão sutil. Seu nariz é lindo. Você é bonito. Ele fez que não. Era sim. Beijei o nariz. Muito bonito, beijei a orelha. E o piquenique, você vai? Vou.

Um estrondo no casco do barco. Parecia que estavam socando todas as laterais. Não eram pedras. Algo caiu em cima de mim. Comecei a gritar. Joguei para longe. Abri bem meus olhos. E consegui ver mil pontos prateados que se agitavam no mar, era um cardume, ensandecido, pulando para fora da água. Pipoca de peixe. Fui ao encontro do que havia lançado para longe. Ainda agonizava. Eu tinha peixe, eu tinha cerveja. Festa.

24.7.13

Parte 5. Consulta


- O que há com você?
- Doutor, meu peito dói. E eu penso que é meu coração.
- Palpitação?
- Não, doutor. Quase nem palpita mais.
- E o que é então?
- Dá assim uma pontada e minha cabeça se estrangula e os pensamentos começam a girar, doutor.
- Alguma coisa mudou nos seus hábitos?
- Ah sim, doutor. Minha vida mudou muito.
- A alimentação?
- Não, doutor. Isso não.
- E como você se sente?
- Com um vazio no peito. Parece uma espécie de autocombustão, doutor. Parece que minha língua se esfarela e me dá um nó na garganta. Minha nuca fica formigando e meu rosto fica quente, doutor.
- Certo.
[pausa] 
- E desde quando isso vem acontecendo?
- Seis meses, um ano, doutor.
- Oito meses.
- Sim, oito meses amanhã, doutor.
- E como é essa dor? Onde ela começa?
- Começa quando sinto muita saudade, vejo uma foto, descubro sobre sua nova família ou coisa que o valha, doutor. Fico tonteada, minhas pernas ficam sem jeito e me dá náuseas. Minha vontade é vomitar tudo, mas parece que está preso dentro de mim, doutor.
- Essa não é minha especialidade.
- O doutor não é cardiologista?
- Sou.
-E não sabe qual é o meu problema, doutor?
- Sei.
- Então porque não me diz, doutor.
- Porque é caso raro e eu tenho medo de me precipitar.
- Mas e se eu morrer, doutor?
- É um risco.
- O que o doutor recomenda?
- Paciência.
- Marcos, você ainda me ama?
- Provavelmente não.
- O que há com você?
- É só tristeza, doutor.

[continua...]

15.7.13

Parte 4. Once but not anymore

Resolvi vasculhar o barco. Achei um abridor de latas, pensei que era um bom presságio e procurei atum, ervilhas, salsichas, mas fiquei só com o abridor mesmo. A boa notícia é que achei um saquinho de doces de Cosme e Damião. Tinha doce de abóbora, um doce azul de isopor, balinhas, uma prece impressa. Comi tudo. Menos a prece. Menos a prece. Achei também uma caixa de jujubas, balas de goma para dar e vender. Achei um energético de dois litros, que tinha um cavalo alado no rótulo. Dentro dos bancos havia um buraco, que servia como um baú. E lá tinha várias coisas úteis. Até camisinha. Resolvi abri-la. Soprei e fiz uma bola. Joguei no mar. Naquele dia tudo estava parado, não passava nem brisa e o mar estava ensimesmado, quieto. Fiquei observando a camisinha inflada se arrastar pelos ares.

Queria uma faca e uma lanterna de cabeça. Sempre quis uma lanterna de cabeça. Mas isso não tinha não. Achei uma lata preta, mas não conseguia abrir, era grande e pesada. A tampa estava presa, deixei de lado, magoada com o abridor que entortou na minha tentativa de abri-la. Maldição. Barco estranho.

Precisava tomar banho. Tirei as roupas e mergulhei, era para ser magnífico e libertador, mas bati a barriga na água e fez aquele estalo. Ri. Alto. A água estava límpida e refrescante. Era bom estar nua. Admito que tive medo de monstros marinhos, mas aguentei firme e me pus a nadar. Primeiro dando voltas ao redor do barco. Depois aqui e acolá. O energético tinha um poder notável. Tive vontade de fazer abdominais. Voltei para o barco e organizei meus pertences. Encontrei a bota com vômito dentro. Ideia estúpida. Joguei fora aquela gosma e pus a bota de molho. Água do mar limpa tudo. Catarro, ferida, evita acne e tira uruca.

O Osnir me contou que uma vez foi acampar com uns amigos e lá para o segundo dia eles foram na cidade comprar mais mantimentos. Ele ficaria na praia vigiando o equipamento de todo mundo. Ele disse que ficou lá uma semana sem que eles voltassem, a própria comida começando a acabar. Lá para o quarto dia decidiu que ficaria pelado. Achou uma pedra e ficava deitado nela, o dia todo, lagartando. Dormia pelado, acordava pelado, comia pelado, surfava pelado. Quando ele menos esperava, chegou uma mulher com bastão de carbono, GPS, mochila 68 litros, bota e viseira. Ele acordou, sentou na pedra e deu bom dia. A mulher olhou para ele apavorada, com terror nos olhos. Ele tapou o que pode e foi correndo de bunda presa até a barraca para colocar uma bermuda. Mas percebeu que a mulher não estava mais lá. Abortou a roupagem. Outros viajantes chegaram nos dias seguintes, sempre com bastões de carbono, entretanto, ele só dava bom dia e continuava esparramado na pedra. Um boato correu que tinha um tarado na praia, doido varrido, pelado na pedra. Era o Osnir. Entediado.

Eu gosto de poesia mas não sei nenhuma de cor. Uma lástima, cada vez que quero um verso, tenho que inventa-lo. Eu não consigo sair do passado, ainda vejo meus olhos cheios de lágrimas, com as mãos vazias, pedindo explicações que nunca virão. Enfrentei milhares de obstáculos, estraçalhei meus punhos lutando e você me disse: não venha mais. E eu fiquei flutuando fora do ar. O mundo me engoliu e você não me resgatou. Enquanto eu despencava, você fechou os olhos. Você me dilacerou e não há nada de novo que possa surgir daquelas memórias. Eu morri quando você me matou. E agora ressuscito pelo meu próprio milagre. Covarde. Que estúpido é o amor.

Parte 3. The grey

Eu acordei com os lábios secos, machucados na parte inferior. A temperatura estava amena, um vento gelado balbuciava qualquer coisa que eu não conseguia entender. O sol se punha no oeste. Eu deveria seguir o sol? O que ficava nessa direção? E se fosse a África, se fosse Portugal. O que existia à oeste de mim?

Das vezes que eu naveguei, meu rumo era algo visível, eu simplesmente seguia uma imagem. Dessa vez, o mundo ficou invisível aos meus olhos. É isso que a ignorância faz, apaga os caminhos. Se eu remasse, gastaria mais energia, mas ficar parada me parecia covardia e não queria conviver com esse símbolo. Era mais difícil agonizar assim. Decidi remar na direção oeste.

Meus pensamentos ficavam dançando. A sensação morna de que haviam me degolado e eu via lentamente o fim se arquitetar. Uma planta seca. morta. num vaso de cimento num apartamento empoeirado do Bairro de Fátima. Cigarros que eu nunca fumei. Revistas velhas com sorrisos afetados. Vi um cardume prateado, peixes altamente comestíveis. Queria que eles pulassem para dentro da minha boca. 

Estava escuro e eu não conseguia ver direito. Ele estava encostado na parede. Na praça. Um homem tocava violão e cantava, um amigo gordo era baixista. Muito bons. O cantor olhava para mim e eu olhava para o rapaz de blusa cinza. Todos sem conseguirem enxergar. O cantor cantava para mim e eu sorria para ambos. Porque queria a música. A blusa cinza sorriu para mim. Eu sorri de volta. O cantor gemeu a desilusão com o Roupa Nova. Ele tinha uma cabeça cheia de cabelos para o alto, dourados do sol. Fiz que sim com a cabeça e ele se aproximou. Ficou do meu lado na escada. Apertou os olhos. O cantor apelou para Frejat. Eu sou o Guto. Oi, Guto. Silencioso. Observava o movimento das pessoas. O cantor cantava de olhos fechados. Acabou o show. Eu me sentia com mil mãos e braços que eu não cabiam em nenhum lugar. Senta aqui, ele disse. Quer alguma bebida? Não - meu coração acelerou. Comprei para nós, não fica com vergonha, pode tomar, é nossa. Uma cerveja long neck. Já vi você na praia, você chegou na sexta. Já vi você indo comprar refrigerante. Até quando você fica? Eu fiquei surpresa. Ele descrevia minha roupa, o horário. Fico 15 dias. E ele sorriu. Deliciosamente, ele sorriu. Vou no banheiro. Fiquei esperando na praça, mas ele não voltava. Tive vontade de chorar, ali perto uma televisão expunha, impunemente, o show  do Exaltasamba. Você é a mulher do Guto?

Sou. Ele está machucado lá dentro. Entrei no bar como esposa determinada e vi a testa dele sangrando. O que houve? Sei lá, eu acordei muito cedo, a fila do banheiro estava demorando muito, sentei aqui para esperar, caí no sono, de repente senti uma pancada. Devo ter apagado mesmo, deixei a cabeça tombar e bati na ponta da mesa. Olhei assustada, tinha pouco sangue. Todos olhavam para ele. Eu sorri, mas ele ficou sério, balançava a cabeça. Desculpa. Não tem problema, eu pensei que você tinha me abandonado, mas só estava tirando uma soneca, né? Nossa, que mancada, demorou muito? Um pouco. Ele só olhava para o chão. Vou leva-la para sua casa. Segurei a mão dele e catei aqueles olhos castanhos. Ei, não faz mal. Isso acontece. Sorri, com os olhos, cílios, nariz. Até que a gente se desmontou numa gargalhada, aquele riso bem aberto. E começamos a elucubrar, inventando versões das mais variadas. Seguramos nossas bexigas, nos apoiamos nos joelhos, choramos. E aí ele me beijou. E foi como se eu tivesse beijado o mar, ele surfava meus lábios. Um tubarão beijando um peixinho. Abri os olhos e vi milhões de estrelas. Uma nuvem passava baixa, achamos aquilo bonito. Ele me disse que estava apaixonado. Disse que era de leão e que me apresentaria todos seus amigos. O cantor passou, no outro lado da calçada, arrastando o violão. Ô, Guto. Ve-lo vindo, com a bermuda meio arriada, queimado de sol, quente depois do dia de mar. 

Oeste.

[continua...]



11.7.13

2. Remadas

Acordei sem entender muito bem as coisas. Apito e capa de chuva jogados a esmo, como se uma explosão de objetos inesperados tivesse ocorrido. Minha cabeça latejava e o mar balançava demais. Desanimada ,rastejei até os dois remos, decidi que um era suficiente e me pus a remar. Depois de cinco minutos, tudo o que tinha conseguido era fazer uma circunferência, um percurso nada eficaz para quem tenta escapar de um oceano. Passei a oscilar, uma remada para esquerda, outra para direita. Finalmente. Remei e remei, por horas minutos, não sei explicar. Meu coração doía tanto que comecei a chorar. Minhas lágrimas eram salgadas e, naquele instante, percebi que o mar habitava em mim. 

E imaginei quantos crustáceos viviam em mim. As águas vivas bocejando, com seus tentáculos voando nas marés. Vermelhas. Azuis. Mortais. Ardentes caravelas. E imaginei os peixes. E as baleias que viviam aqui dentro. Dentro do meu coraçãozinho. Vivia tanta coisa bonita, por isso que eu chorava oceano, tadinha de mim que não tinha onde desaguar, chorava, remava. E dei por mim perdida, sem direção, remando só para não morrer num lugar só. Eu desfilava meu desespero entre as correntes. Tartarugas ficaram me olhando com pena. E eu não tinha um norte. Remei, como se meu esforço compensasse as dores. Remei, como se o movimento apagasse o passado. Remei como se a distância me afastasse de mim mesma. Mas, no fim das contas, lá estava eu, no canto de mim, despropositada e orgulhosa.

Exausta, joguei o remo fora. Lancei no mar meu instrumento de tortura. Arrependida, me lancei do barco, nadei alguns metros e trouxe de volta o remo. Subir no barco foi quase impossível. Não tinha forças para me  suspender e tinha medo que o barco virasse. Sentindo-me impotente, comecei a morder a água como uma louca. Por fim, como uma senhora de oitenta anos, levei meu corpo, minha alma e meus dentes vorazes para dentro do barco. O sol já estava ameno. Achei minha bolsa. Encontrei um pente, protetor labial, pulseira e escova de dente. Usei tudo ao mesmo tempo. Eu estava tão triste.

Lembrei do Pepe. Ele tinha levado um tiro no coração e nunca mais tinha se recuperado. Tentaram matar a mãe dele, mas atingiu ele também e arrebentou o coração de todo mundo. Ficou faltando um pedaço dentro do peito dele, por isso ele nunca tirava a camisa, tinha medo que vissem o abismo que tinha lá. Mas ninguém via e, vez por outra, recebia uns golpes na sua antiga ferida. Algumas pessoas são verdadeiras chagas na nossa vida. Vira e mexe voltam abrir e florescem a dor. Depois vão embora, cínicas e assustadas com as consequências de seus atos. Pepe vivia de coração roto por causa de Estela. Aqueles olhos esbugalhados fascinavam o pobre homem. E ele vivia como uma pipa, no céu, mas bem preso. Que carretel é esse que nos prende? Sempre me perguntei. O medo de não ter quem nos segure, talvez. Pepe resolveu que não amava Estela, resolveu que era livre e foi viajar. Morou fora por uns tempos, conheceu Isabel e estava forte e vigoroso. Mas Isabel degringolou com a distância. Estela batia na porta todos os dias, na esperança de entrar. E ele disse não. Disse não nunca mais. Disse que não era bobo. Disse que aquilo não se fazia. Disse que podia entrar só um pouquinho. Disse que o sofá era dela. Disse que o anel cabia bem no seu dedo. Disse que a amava e estava satisfeito da vida. Mas Isabel degringolou com sua canalhice e traiu o pobre homem. Manchou o rosto dele de lama e esfaqueou suas forças. Ele ficou sem ter para onde ir, ela era o seu destino. Ficou sem ter talheres. Só carregava um punhado de razão que não tinha coragem de compartilhar com ninguém. E quando lembro dessa estória lembro também que não sei que fim levou Pepe. 

Sempre invento um final feliz para ele. Ele já foi açougueiro rico em Paris, já teve filhos com boquinhas vermelhas e olhinhos brilhantes, já teve uma esposa suave e miúda, já encontrou uma ilha nova na África. Eu fico tentando explicar o porquê, dele ser bonito e merecer felicidade. Mas eu não sei como. É como aquela fruta deliciosa que desmancha na nossa boca e some. Ou como um beijo enquanto você dorme. É algo que você sente e escapa, é como se flores brotassem em espirais e pousassem em nossos ombros e a noite caísse e tudo descansasse.

Essas lembranças trouxeram o pôr-do-sol e as estrelas resolveram se espreguiçar diante de mim. Eu não sabia ler sol, e estrelas, sinais ou coisa que o valha. Como achar a saída diante de uma imensidão? Fiquei tentando inventar algum sentido e pedi para que as três Marias me orientassem. Nem Deus, nem as virgens. Onde eu vim parar?


[continua...]

10.7.13

1. Jornada nas estrelas

Quanto mar. Ela pôs as mãos na água. Olhou para os lados. Onde?

Não sabia como continuar os pensamentos, os problemas lhe pareciam insolúveis demais, insuportáveis. Sua mente assumiu um looping, onde as ideias reverberavam desconexas e iguais. Como um martelo, no seu golpe opaco. O céu assumiu um azul escandaloso e o sol resolveu impor todo seu calor e luminosidade. Sede. Lambeu suas mãos, salgadas. Não havia sombra, só um barco e ela. Onde?

Ela se inspecionou, não estava machucada. E como quem se distrai no meio do tiroteio, começou a admirar os dedos dos seus pés, a unha falhada do dedinho. As marcas do joelho. Viu seu umbigo, quis morar dentro dele. Trouxe a ponta dos cabelos até seu nariz, fez deles um bigode postiço. Abriu seus olhos para os pássaros, começou a mordiscar o cabelo, levemente, como quem come amendoim em dia de jogo de futebol. Onde?

Ela observava tudo com calma e pudor. Eu estava aterrorizada. Não sabia qual de nós era a farsante, eu ou ela. Às vezes, quando acontece um desastre, se institui dois reinos dentro de nós e observamos como terceiro aquilo que experimentamos em nossa própria pele. Uma espécie de desencarnação de si mesmo, quando não se consegue completar uma reação. E nós ficamos informes, como um feto que boia num vidro de formol: morto e conservado.

Finquei-me em mim mesma. Abandonei a terceira pessoa. Mas simplesmente não sabia o que fazer. Olhei ao redor em busca de algum objeto salvífico. Achei maçãs, biscoito de polvilho e umas sete cervejas. Nenhuma gota d'água. Mergulhei de novo a mão no mar e lambi. Salgada. Sempre salgada. Abri uma cerveja. Tomei. Sede. Outra. E outra. Ao final da última golada, estava enebriada. Sentia-me no Caribe Colombiano, capaz de discutir política internacional e lançar moda em Milão. Eu era fantástica. Aquele barco era meu melhor amigo e polvilho tinha gosto de bife acebolado. Achei as maçãs apetecíveis. Uma estava meio podre, era melhor começar por ela.

Meti a língua naquela textura marrom. Estava quente e tendencialmente pastosa. Como nas tortas, pensei. Como as tortas. Resolvi comer o cabo também. Só Deus sabia quando iria voltar para casa. Alguma enzima cuidaria da digestão. Cupins têm enzimas bacanas. Comem madeira e dá tudo certo. Serei um cupim selvagem, conclui.

Resolvi que deitaria no chão do barco abrindo meus braços. Projetando a forma de cruz, no convés à estibordo. Bombordo. Palavras estúpidas. Em forma de cruz, fechei as pernas, estiquei. Cri que desta maneira teria mais condições de Deus perceber a emergência na ronda dEle. Ronda matinal no paraíso. Achei um bom plano, mas meu rosto ardia. Fiquei de bruços. Joguei o cabelo no rosto e comecei a sentir o gosto da madeira. No tédio absoluto, comecei a raspar meus dentes no chão. Foi quando nada aconteceu. E nada aconteceu.

Morrer de tédio: esse era meu destino. Sentei de pernas cruzadas, sentindo um enjoo milenar. O maldito cabo da maçã. Era isso. Senti ânsia de vômito. Meus pensamentos se aceleraram: desespero de desperdiçar minha refeição. Avistei um pote gigante que tinha diversas quinquilharias dentro, uma bota de borracha, inclusive. Mas eu queria um pote menor. Nada. Apito, não. Capa de chuva. Boné. Isqueiro. Bolinha de tenis. Nailon. Não, não!

Vomitei na bota, decidida que estava de guardar meu lanchinho. Já vi minha cachorra comer coco e li numa revista qualquer que ainda tem nutrientes. Fica lá, um monte de nutriente. Vislumbrei que o vômito era um estoque, espumante nutricional.

Nossa, um cansaço milenar. Eu era muito antiga. Fundadora do planeta Terra. Adormeci. E sonhei com o Osnir. Quando eu o conheci, ele tinha uma lanterna na cabeça e tentava abrir uma lata de sardinha. Todos já estavam comendo suas batatas assadas, tapioca com manteiga, sopa de legumes imaginários e ele lá. Tentando abrir a lata. Uma faquinha ridícula que não cortaria nem uma lombriga. Ofereci a minha. Foi um sucesso. Ele era fotógrafo e hoje iria captar estrelas, era só deixar a máquina lá, de tempos em tempos tirava fotos. Sozinha. Clic Clic. E no final dava para fazer um filme. Eu achei tremendo. Ele era alto, tinha uma calça da Bolívia. Ficamos naquela conversa ritmo-maconha, que é quando pessoas sóbrias estão se paquerando em uma progressão lenta e relaxante.

Estava me decidindo se era importante ou não conhecer a face de um amante. A cabeça dele irradiava luz com aquela lanterna e era impossível olhar tamanha clarificência. Qual não foi meu espanto quando a lanterna dele se apagou e outra luz nos iluminou. Ele tinha olhos verdes, aquele maxilar marcante e um nariz digno. Um ar de super-homem com cabelos pretos. Minha amiga, que teve o mesmo vislumbre, fez ares de desmaio, virando os olhinhos e dando tapinhas imperceptíveis nos meus braços. Peixão. Joia rara. A lua estava cheia e ele foi mijar na beira do mar. Estávamos no saco de dormir dele que abria feito um cobertor. Moça bonita, ele me chamava assim. O beijo dele era quadrado, tinha assim um monte de quinas. Dentes quadrados. Barriga quadrada. E fotografava estrela. Vai entender.

Por fim, ele me convidou para ir na barraca dele, tentando me convencer que tinha uma tecnologia avançada. Eu achei graça. Tecnologia. Fiquei sorrindo no escuro e disse adeus. No outro dia tinha uma trilha de seis horas para fazer. Era uma travessia, Osnir, uma travessia. E eu estava partida.

[continua..]

2.7.13

Bundas rachadas

Ei, hei de colocar mega-hair, unhas de porcelana e lentes de contato cor de mel. Ó ou sou mulher forte, parida desde depois do ventre da minha mãe. E nada vai me aborrecer. Porque eu dou a volta por cima, se não tenho emprego, me depilo eu mesma. Se os homens se mostram nefastos, leio livro de auto-ajuda, romances em pocket book. Porque eu sei do meu valor, escovo os dentes diariamente, evito frituras e nunca traí namorado. Porque eu sei da minha vida. Eu tô bem. Super bem. Lido bem com aumento de peso, celulite e cabelos quebradiços. Bem mesmo. Já passei por coisa pior, naquela casa em Olaria com Gilberto. Só queria saber de fumar maconha e comer pão doce, aquele desgraçado. E eu cozinhando, passando, feito esparra. Desalmado, desgraçado, filho de uma égua. Mas eu não guardo rancor. Nem dele nem do Norberto. Quando ele anunciou que eu não tinha classe, elegância e fineza para conviver com os almofadinhas de Vila da Penha, que eu fiz? Gritei? Não. Xinguei? Não. Pedi clemência? Nada, eu falei: felicidades! Eu não desejo o mal de ninguém, fica lá arrotando sanduíche de subway do Largo do Bicão. Norberto foi assaltado, tempos depois, não quis dar a moto e levou uma facada nas bolas. Diz que arrancou uma, diz que ele usa prótese e isso virou maior tabu. E eu fico feliz com isso? Lógico que não, minha vontade é que todo homem tenha suas bolas de nascença.
Mas, como diz o ditado, né: ao que se faz,

Acredito numa certa justiça e quem arregaça nosso coração, sem legitimidade para tanto, merece se estrepar moderadamente, como medida socioeducativa. Porque pense comigo: de tanto dar a volta por cima, já estou rodeando as alturas por muito tempo. Gilberto foi a tatuagem de golfinho. Norberto, a estrela de Davi. Hilgiberto o dragão nas costas; Antônio Alberto os olhos de onça na panturrilha. Vai faltar pele pra tanta superação. Já cortei cabelo, pintei cabelo, saí com as amigas, chorei com as amigas, comi feito porca, fiquei anorexa: sorvete, chá verde, batata palha. A gente cansa. Eu nunca quis colocar silicone porque meu peito já é grande. Mas você me entende?

Mas minha história deu guinada. Gui-nada. Conheci o Berton, ele é francês, com ascentente em Itália, super bonzinho: só fala u-i, u-i, a gente se dá super bem. Mora aqui perto, em Cordovil, pegando a van 15 minutos da ponte verde de Vigário. A gente não briga, não conversa, nada dessas palhaçadas. Foragido ou não, eu gosto dele. E é isso que a gente leva dessa vida: o importante do amor, é amar.




3.6.13

Per capita

A imperceptível leveza do nada. Silêncio é a decapitação da palavra. Naquele momento, todos os vernáculos vindouros tombaram. Aos nossos pés. Mortos.

Mais uma vez, como num ciclo infinito, imaginei e projetei meu passado. Um emaranhado que sufocava os meus dias e as esperanças toscas que tentatavam resistir. Não que a vida tivesse piorado ou se tornado mais triste. O céu ainda continuava um escândalo, milhares de melodias ecoavam no meu peito, sistematicamente revitalizando uma espécie de paz.

O enlouquecedor foi a consciência, quase abrupta, da finitidude das relações. Melhor dito: o choque veio da miudeza do amor. Um amor juramentado, com promessa para dar e vender. Direito sólido e todo correto. Encontroversávamos sobre tudo. Completamente dentro do ordenamento.

Mas aquele silêncio, foi como um espirro de um desconhecido na minha boca aberta em um bocejo. Inimaginável. Nojento e proibido. Aqueles ombros murchos, mãos guardadas nos bolsos, olhos pendentes num rosto inexpressivo.

Eu merecia que você perdesse a cabeça. Chorasse já num olho dentro de uma cabeça sem corpo. Um algoz encapuzado com um facão imenso, executando algum juízo em você. Um juizado final com competência extraordinária.

Teríamos uma Corte Coronária constituída e constituinte de 11 mulheres amargas. Com verrugas e olhos remelentos. Para o terror de todos aqueles que desrespeitassem a Lei Maior do Amor e Gozo Eternos.

Nada de blá blá blás ou mimimis. Só cácácás e mômômô. A ditadura do amor tranquilinho. Sem essas revelações bombásticas de mudanças de sexo, de reviver amores de infância, de mochilão para Arábia Saudita. Nãnã não. As mulheres amargas seriam unânimes em prolatar: "Sossega o facho e curte seu moreco."

Mas não. Você. Deu cotovelada no nariz, apertou o mamilo e mijou no meu pijama xadrez. Vandalismo sem precedentes. E eu sem recursos. Sabe o que vai acontecer?

Vou ouvir pagode e colocar seu nome na boca do sapo. Porque atentados dessa natureza não podem, não devem e nunca ficarão inpumnes.

19.5.13

Anzol


Havia um pai, todo sujo de graxa, descansando na hora do almoço. Ele consertava caminhos ou caminhões, agora não lembro ao certo. O filho dele comia cheetos, sabor vômito. Antes de  comer o biscoito ele olhava, cheirava, enfiava os dentes na metade. E depois jogava a bolinha lá dentro. Debaixo da árvore. Exaustos. Olha, cheira, morde, desmorde: come.

O pai tinha ares de quem fumava um cachimbo. Fui me aproximando, meu caminho cruzava o deles. Eu passava por onde eles se situavam. A voz do pai era grave e a do filho era muda. Ele disse para o garoto: - Temos que aproveitar enquanto o Obama está no poder.

Temos que aproveitar enquanto o Obama está no poder. aproveitarobama. poder. poder. temos poder. obama.

Há três dias isso não me sai da cabeça. Pensei em comprar um cheetos. Pensei em aproveitar o Obama também. Mas não sei ao certo como. Não sei se sei como comer em rituais sagrados com cachimbos simbólicos.

Ele era negro e o suor reluzia sua pele.

Fiquei sem teto e sem chão. Com ideias esparramadas por tudo que é canto. E percebi que aproveito pouco as coisas. Eu percebi que o menino sabia se alimentar e eu me dei por faminta. Engulindo atropeladamente meus desejos. Às vezes um lampejo de lucidez passa o nariz em nosso rosto e beija nossos olhos.
beija nossos olhos. enquanto está no poder.

Percorri minha alma em busca de oportunidades, em busca de lapsos temporais que estavam prestes a expirar. Aí olhei. Olhei bem. Fiz do meu desejo, objeto. Peguei. Manjei. Mordisquei.

Isca. A vida me pescou.

16.5.13

Aparição

Eu abri meus olhos e vi o paraíso. Uma espécie de junção de profecias e falhas reiteradas. Eu abri meus olhos no escuro e me vi sedenta. Não havia nada senão eu mesma: dentro e fora de mim. Dançando no vão, no abismo da plenitude.

21.3.13

Fardo de algodão




Hoje ouvi uma estória tão triste que meu coração ficou amolengado. Assim escorrendo pelos cantos, com um chorinho miúdo. E como quem sente o peito explodir, transbordei em palavras.
Isso tudo
porque
Certa vez encontrei uma menina com ares de céu. Quando a gente mirava bem pra cara dela, a gente mergulhava num paraíso qualquer e ficava espantado. Era um susto daqueles, com a suavidade daqueles olhos enormes, daqueles cílios longuíssimos. Dança na ponta dos pés, bem na ponta dos pés e veste seus pensamentos com risadas.
Bonitinha. Aquele mimo de gente, aquela pessoa feita de brisa. Ela é assim uma florzinha. Parece um amanhecer calmo. Escandalosamente colorido. Tons de rosa e amarelo. Ela tem azul. Ela é erva doce. Ela é  cambalhota. Levita assim.

Só que ela vive pesada, ultimamente. Encasquetou que fardo de algodão é sempre leve. E não percebe. Não vê a armadilha da maciez. E acaba que tudo machuca. A flor corta, o beijo mata e as promessas apodrecem. E ela fica sem entender. Ela que tem tanto amor. Ela que. Ela que quer. Que quer tanto amor. Tanto ah, mar. Uma Oceania por completo ela tem, ela quer.

E de repente tinha tudo. Alegria e futuro. Mas sem mais não resta nada. E ela fica flutuando. E o vazio se espalha pelo espaço e o coração dela acaba se desmantelando. E ela chora. Porque ela não tem mais forças. Não vida. Assim você sufoca. Algodão por todos os lados e nada faz dissipar essa onda morna de sofrimento. Essa desilusão de delírios. Perecerão.
Isso tudo
porquê
Minha vontade é colocar uma espada na mão dela. E queimar aquele algodão todinho. Transforma-la numa ninja sagaz. Ou melhor. Que ela se transmute num gigante poderoso, que peidasse na cara de todos os bandidos. Daí eles vomitassem. Aí também eles iriam ser obrigados e comer fandangos de queijo pro resto da vida. E ela feliz. Num mundo que pudesse comer de tudo e não engordasse. Que os livros fossem de chocolate. E que Floranópolis fosse do lado de Paris, do lado de Niterói, e que ela morasse por lá. E que ela pudesse se reinventar. E que mandasse chupar meia suja quem dissesse que sonhos não são reais.

Eis que vos digo: fardos são sempre fardos. Sejam eles doces ou macios.

Que o vão
em paz
se vá,
meu amor.

14.3.13

José pinguim


Eu que não amo você.

Uma página em branco. Para eu tatear aquilo que sinto. Letra por letra. Cuspe por cuspe.

Meu bem, ah, meu bem. Não se preocupe em ficar invisível, há tempos que eu não lhe vejo. Ah, chuchuzinho, não fique assim ensimesmado. Nada de mal vai acontecer, um chute no seu traseiro não é assim uma má notícia. Veja que é um pontapé simbólico. Eu montei em mim mesma e estou aqui galopando nas minhas ideias. Uma pessoa indigna de vernáculos. Veja que nem nada você é. Eu, benzinho, não amo você.

Certo dia, cruzei as minhas pernas, coloquei meus óculos emocionais e vi que meus sentimentos estavam cheios de fissuras e verrugas nojentissímas. Passei limão. Comprei pomada de melão asiático. Mel fervente. Gengibre em gotas. Mas não dei conta de curar essa porqueira toda.

Pinguinho. Zé pinguinho. Ama em gotinha. Tadinho, não sabe jorrar.

Por isso, lhe digo agora: passar bem. Estou a meter o pé. Como um defunto corriqueiro: passando dessa para melhor.

17.2.13

Com partir. Com dançando.

O meu coração tem pressa em partir.
Ele quer ser arrastado em uma corrente marítma e percorrer milhas e mais milhas bombeando oceanos.
Ah, e se eu vejo um par de olhos, imagino as paisagens que já se colocaram sob eles. Ah, e se eu vejo uma boca imagino as poesias proferidas. Ah, mas o vento parou. Ah, mas a música cessa antes dos tempos. O eco ainda se debate por entre as paredes, penetrou no concreto, abalou sólidas estruturas. Ah, mas nada ruiu. Ah, nem mais reinei.
O fio se rompeu.
Ah, maldade. Ah! Delírio. Ah, dor no peito.
Fui atravessada pela terra. Fechei os olhos e dentro deles havia chão. Por todos os interiores, solo. Não há levezas que caibam nessa tristeza. Fui muito triste. Fui toda preeenchida por lágrimas: meu cabelo evaporou com o sol, meus dentes condesaram. Acabou o sorriso e o penteado, foram todos para as nuvens, no ciclo de sempre, chover em algum lugar.
Ah e eu fiquei ressequida. Minhas mãos foram se tornando como raízes, como a copa de uma árvore sem folhas. Minhas mãos estavam vazias e rígidas.
Contínuas. Continua.
As. As mulheres do meu bairro são felizes. Comem almôndegas fritas assistindo novela das 6. Criam seus filhos, cuidam de seus maridos. Sabem da felicidade.
A felicidade, meu caro, é bem simples e consiste no seguinte negócio: tomar suco de laranja a vontade, ter com quem contar estrelas e possuir uma meia quente e velha e esgarçada.
A beleza da complexidade é uma falácia. Eu mesma sou um grande sofisma. Carrego diversas premissas falseadas. Todos, em certa medida, somos farsantes. Alguns burgueses, outros atletas, outros radialistas.
Há tantos rótulos quanto inovações. E cada vez que pretendo ser essencial e me livrar de dogmas, acabo criando deuses e máscaras. E me escravizando para esse paradigma que invento.
Faço mudanças para alcançar o de sempre. É a mesma carcaça. O mesmo esterco. O mesmo nada.
Eu percorro os meus universos e percebo com clareza este ponto em comum: o vazio. Veja que há abismos no céu, no mar, na terra. E há abismos dentro dos nossos olhos, no nosso peito, em nossa razão.
A minha razão, desprovida de qualquer senso de dignidade, sai fuçando os meus sentimentos e escolhendo quais devem imperar. E numa matança desenfreada extermina prazeres pequenos, mas vitais.
A razão foi tão eficiente que pouco restou. Sou um corpo-máquina, onde só se ouve o barulho das minhas hemácias, dos meus néfrons. O sentimento, morto que foi, escorreu para os meus pés. E cada passo dói a alma. Sem inquietar o corpo. Tornei-me espera. Qual será o meu ofício?

7.2.13

Multi.L.ação


Dissecaram meu coração.

Alguém, por favor, me acode. Coloca de novo no meu peito aquela esperança. Desenha na minha cara aquele sorriso. Porque eu abri os olhos e tudo o que vi ao redor foi um espaço infinito. Uma imensidão a ser preenchida. E eu não sei como faz. Como faz para inventar tanta sustância para uma vida só. Parece até que eu cheguei num penhasco e que me gritam lá de baixo - e por todos os lados: faça a ponte de você mesma. E passe por cima de si mesma e percorra-se. Mas eu que sou boa em metáfora, não sei como faz. Como faz para inventar tanto de eu que vire uma ponte e me faça atravessar.

E eu estava lembrando que desde pequena acreditava no amor. E salvava os meus princípes com pontapés e voadoras, eu era ninja. Eu nunca fui princesa no castelo. Mas mesmo com os ferimentos do resgate, naquela época, eu gostava do amor. Porque era funcional. Veja que eu só tinha que lutar com mil gordos fortes, salvar meu xodó e dar um beijo sem língua. Na minha cabeça, era o suficiente. O amor era luta e selinho. E agora?

Ah, filhinho, agora é uma complicação que só. Descobri que beijo sem língua é totalmente banal e lutar pelo mocinho é masculino demais. Tenho pensado em soluções. Já que não posso desenvolver o meu plano básico criado na infância. Acho que pinto o cabelo de loiro e começo a chamar os candidatos de "Mô". Faço cara de minguada e fraquinha e de quem tem dor de cabeça frequentemente. E fico no maldito castelo esperando ele conseguir completar a missão.

Percebe? Nunca será.

Todo mundo quer ser reconhecido. Já dizia Axel. Sweet Child. Honneth. E isso mexe com sua autorrealização. Ó, conta outra. Você sabia que é possível escrever toda uma tese de mestrado falando sobre o óbvio?

Então, vem cá. Que eu serei mestre em obviedades e quero te ajudar. Sê forte. E maduro, para não machucar. Lá vai: sempre seremos sozinhos. E nada no mundo será capaz de aplacar essa nossa solidão. Vamos chamar e ouviremos?

Ecos.

Se eu fosse gerente do mundo eu mandava logo evacuar esse lugar. E acabava com o dinheiro. Acabava com o dinheiro todo pra mim. Mandava quem quisesse pro céu, e quem não quisesse,bem, pro inferno. Eu iria ficar perambulando sozinha pela Califórnia e ia usar várias roupas legais que foram abandonadas nas lojas. Iria comer várias comidas da Tailândia. Quase não iria poluir o mundo e uma vez por mês faria um relatório pro Poderoso. Não iria pecar nem nada. Iria ficar só na disposição da Santidade.

Bem melhor.
Nunca será.

Minha conclusão é que o amor anda se complicando, o mundo não vai ser todo evacuado e que somos todos sozinhos.

20.1.13

E se não, meu bem?


E se não, meu bem?
Aqui dentro repousa um lagarto preguiçoso, amigo de Monteiro Lobato, pegando sol com Emília, querendo fazer ele mesmo a reforma ortográfica. Tanto o lagarto quanto Lobato querem mudanças. Querem petróleo. Os dois.

Virando a esquina achei um mundo de Lewis com a Dama verde e o rei. Com um mundo aquático todo dourado. Ela luta contra um algoz o tempo todo. Uma Eva com várias tentações.

E aí, quando abro os olhos. Nada de tão bom assim. Um monte de questões jurídicas insolventes, devedoras. E uma cartilha. Viver, empregar-se, casar-se, morrer-se. Só a vida teima mesmo em não ser reflexiva. E nem dá. Porque cada palavra é roubada da minha língua e cada sonho é sugado de dentro da minha testa - onde vivem os pensamentos nascentes.

O que vejo, muito claramente, é que para viver é preciso rasgar algo. O que te pedem, rasga. O que é fácil, rasga. Cochilo de alma, rasga.  É uma picada bem estreita, um passo-a-passo infinito. Eu estou achando que é assim. Qualquer dia pego o macete de ser feliz. Meu único medo é que a felicidade seja impronunciável. Confesso que ando meio desconfiada disso: que quando uma alegria profunda se debruça na gente, some o anúncio e decanta um silêncio. Como que uma cripta para o segredo.

E aí, quando abro os olhos, vejo um lençol listrado branco e azul. E meu primeiro pensamento do dia é: mar de ondas. Bonita minha cama. E fico mais ali. Rememorando. Imaginando pessoas e lugares. Fungando o passado. Misturando com um futuro psicodélico. Onde sou dona de casa ou policial ou atendente de telemarketing. Com cabelos loiros ou careca e fétida. Olhos pros meus livros. Tanta gente já me ensinou tanta coisa. E o que eu disse?

O que vejo, muito claramente, é o escuro. E vejo que quase tudo que me pedem eu nem quero dar. E aí sossego. Com ganas de sobreviver a esse mundo devorador. Escondo meus delírios, esperando o tempo de desenterra-los. Fico com fé em mim mesma, de que seria leal aminhalma.
E se não, meu bem?

Sentei no colo de mim mesma e me pus a me ninar. Para me consolar das partidas e dos desenganos e dos amores mortos. Estou triste não, meu bem. Só estou aprendendo a olhar melhor as cores. Um baque surdo. Aquela despedida parece que nunca acaba.
O que é fácil, renasce. Mas.
E se não, meu bem?

17.1.13

Colação

Cole sua língua no céu
da minha boca e confesse mais uma vez que não
me ama
para ver se eu aprendo a desistir.

Eu que engoli tempestades e vivo a cuspir marés.
Mar me quer. Esse amor que morre eu no meu peito.
amor ao amor, que é o
 dono da esperança,
anda moribundo
e desacertado dentro de mim. De repente dá cambalhota
 e lambe minha cara e as palavras desmaiam.
Não sei se o futuro floresce ou cansa de existir.

Meu coração tomba, meu coração bate. Batetombariu,