9.10.13

Morricenta

Foi na véspera de Natal que descobri que minha infância tinha morrido. Por um desastre qualquer, houve uma cisão e, me explicaram, eu deveria ser boa. Eu já não era boa o bastante. Não. Mais.

Uma fila de visitas, abraços. Desolações. E batiam levemente na minha cabeça, sem olhar nos meus olhos. Mãos firmes no meu queixo e levantavam-me o rosto: seja uma boa menina, ajude seu pai e seus irmãos.

-Mãe?

Melhora logo.

Temos que ser bons o bastante. E fomos. Suportamos as dores mais trucidantes. Uma sensação de estrangulamento constante, que nunca mata, por mais que se peça.

Fui boa. Não chore! Não choro. Dar leveza aos destroços que se amontoavam. Salvar sua alma da desesperança.

Inaugurei uma nova existência sem reclamar de tragédias, banidora de tristeza: e caminhava. Dia após dia. Arrastando tudo com uma força sobrehumana. Havia um abrigo e era para lá que nos levava. Morri de fome, morri de sede. Morri de tanto gritar. Morri por quatro golpes fatais. Morri por palavras mal proferidas. E achei abrigos dos mais diversos. Achei paraísos, destruí oito infernos.

Tire a mão do meu queixo e não me peça para ser boa. Nunca mais.

E de tanto prosseguir: tornei-me forte, indestrutível e grave.

Ser boa é maturar-se e só cabe a mim. Só cabe a mim existir.

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