25.2.16

Uma paixão, um amor, um engano

Olhei do alto da praça e gostei do que vi. Um cabelo meio enrolado e um jeito pausado e forte. Dentes absolutamente brancos. Tocava uma música qualquer dos Titãs. Ele olhou para mim, eu sorri.

Era de tarde e minha amiga estava ficando com rapaz vestido de pescador. Eu ia seguindo o bloco de longe, quando vi uma peruca brilhante, ele andava pela calçada e eu vinha atrás. Observando. Passei por ele e fiz uma piada qualquer, a resposta me divertiu enormemente.

Aos poucos, foi subindo a escada. A cada progresso, olhava para ver minha reação. Eu sorria. Naquela época só sabia sorrir. Ele sumiu do meu campo de visão para aparecer, alguns minutos depois, do meu lado. Olhei de perto. Perdi o fôlego.

Fui conversando, para ver até onde iria a sua criatividade. Sem limites. Decidi que aquilo era ótimo e o beijei. Ele tinha um tênis com umas partes verdes, daqueles de corrida e só falava com a voz do personagem que havia inventado. Perguntei qual era o nome dele. Disse que não tinha nome.

Ele não conseguia falar nada. Enfiando e tirando as mãos de dentro do bolso, como se ali dentro pudesse encontrar qualquer punhado de palavras que o ajudasse. Sentamos em um banquinho. Ele já tinha me visto antes na cidade. Nos beijamos.

Ele também não tinha profissão, porque essas coisas não pertencem à magia do carnaval. Até o beijo dele era faceiro. No meio daquele barulho todo, sua gentileza vinha como um passarinho pulando no quintal. Sem que ninguém espere, beliscando um pedacinho de qualquer coisa.

O cantor do bar passou por nós, ressentido. Sozinho, carregando o violão. Ele me beijava como uma onda, como que em semicírculos. Num símbolo do infinito. Uma nuvem passou bem baixa. Olhamos fascinados. Ele me disse: “estou apaixonado por você”. Meu corpo flutuava.

Fomos andando na direção da música, me deu a mão e, por uma razão que me escapa, me senti segura. Comprei uma pipoca e ele estava faminto. Foi comendo naquele contentamento que só os bêbados alcançam. Um amigo dele apareceu. Um amigo dele foi embora. Fiz xixi atrás da banca, enquanto ele vigiava os intrusos. Fui embora sem saber como chama-lo.

A memória fica como o carinho de bigode de gato. Umas cócegas, leves e sem dimensão exata. Apaixonar-se. Amar e desarmar-se. Não há engano. Há esperança.

15.2.16

Carnaval

Tem horas que a vida dá um intervalo e surge um imenso silêncio, cessa toda a percussão e fica o bumbo, ecoando, gravíssimo. Como se os movimentos oscilassem: devagar eu, rápido o mundo; eu voraz, o mundo cochilando. Um bum bo.

Vamos nos calcificando e criando ossos até nas nossas partes mais moles, uma tentativa de gerar estrutura, eu acho, para enfrentarmos os obstáculos menos liquefeitos e esparramados. A doçura e a inocência se fundem num sentimento quase triste: nostalgia.

Aprendi que as experiências nos percorrem e vão deixando seu espólio em nós. Como se fôssemos um rio, onde a água que nos atravessa fosse aquilo que vivemos. Às vezes, arrancam nossas barragens, outras, enriquecem nosso solo. Deixam lixo ou mudam nosso curso: podemos virar lagoa ou desembocar no mar. A vida é um constante movimento de inundação.

Uma importante conquista foi perceber que tenho domínio sobre o meu leito, quase nada é irresistível. Algumas mudanças são difíceis de remanejar, mas com persistência, sempre é possível se aproximar do que éramos antes, na nossa antiga geografia.

A questão é: queremos ser os mesmos? Queremos negar sistematicamente todas as alterações que nos alcançaram?

É desconfortável mudar de forma, mas nem todo desconforto é ruim. Exige, entretanto, mais diligência, teremos que reconhecer nossas novas fronteiras e reinterpretar nossos caminhos. Sonhos desaparecem, outros brotam. A projeção sobre o futuro não alcançado não é um aborto. Algo que morreu. O que não aconteceu precisa deixar de existir para dar espaço àquilo que vai surgir.


Vez por outra temos que esganar uns fantasmas, no escuro mesmo, quando eles vêm nos assolar. Uma parte do novo é chamada medo. Como uma pedra de argila, com mãos insistentes e com água disponível. Desconstruindo as armadilhas e dando novas serventias ao nosso material emocional. Precisamos cuidar de nós mesmos, tatear nossos pensamentos, cuidar das feridas. Semear brotinhos de alegria. Regar e regar. Regar. É preciso se esticar até o último pedacinho do dedo para alcançar a esperança. E pega-la.