15.12.12

Beldade


Um dia um rapaz de miolos meio frouxos me disse que eu era uma beldade. E ele falou com a boca tão suculenta que eu acreditei. Achei engraçado: "beldade". Fiquei me sentindo a Tieta numa daquelas praias do nordeste, esticando a canga para o vento completar minha performance sensual.

É misterioso esse mecanismo de recepção de elogios. O pedreiro tem uma função ambígua e necessária na vida de toda e qualquer mulher. Dia chuvoso: seu sapato descolou, sua barriga cisma em ficar pendurada na calça, suas unhas parecem a de um coveiro, sua melhor amiga casou com o príncipe da Escócia - deixe-me instituir meus reinados - e você lá: no sofrimento implacável de uma vida sem amor. Aí vem o pedreiro, junta todos os quatro dentes num só sorriso e diz: linda. Lindiah demás. Como você se sente? Nossa senhora do padre Cícero da comunhão dos pecados. Você sente modelo de sabonete Lux. Toda cheia dos sabão, numa banheira branquinha, gostosa até tirando meleca.

Ou

 e você lá: no sofrimento implacável de uma vida sem amor. Aí vem o pedreiro, junta todos os quatro dentes num só sorriso e diz: linda. Lindiah demás. Como você se sente?

Fula da vida porque só esse tipinho mesmo que aparece na sua vida. E você, emburrada, lembra do ex-namorado gay. Daquele que fazia você pagar todas as contas. Daquele que se casou com a prima da sua amiga e agora vive em Miami. Você se lembra que homem não presta e deixa a amargura brotar em seu puríssimo coração.

Minha função aqui é a seguinte: facilitar a aceitação. Aceite o chaveco do pedreiro e floresça num sorriso afetado. Eu lembro o dia que cantaram para mim Michel Telô. Foi um dia de glória. Veja bem: é melhor do que tomar anti-depressivo. Ouça a voz do pedreiro. Porque eles te qué ou num qué. Os carinhas que você gosta são como? Confusos. Precisam de espaço, se estabelecer na vida, terminar a pós. Pra depois pensar no amor e naquilo que você representa na vida dele.

E os pedreiros? Só no sussurro pra você: "jóia rara". O mundo feminino precisa entrar em obras. Isso é fato.

27.11.12

Extraño

Saudades é quando sua alma brinca de pipoca. E não sossega. Aí vira flor de milho. Pipoca doce. Caramelizada. Saudade é um comichão no peito. É assim a lembrança gostosa, que se amofinou no passado e não dá mais para lamber. Nem fazer cócegas. Saudade é uma espécie de pássaro subterrâneo, que fica voando por dentro da gente. Fazendo lembrar bobeirinhas. Risadinhas. É uma vontade de deitar na barriga da pessoa. Saudade é uma merda.

24.11.12

Muito mesmo: eras: um começo de poema


Caleidoscópio.Um milhão de imagens.Já não sei como pariram tantas cores.Mastiguei uma flor e
tenho hálitos de primavera.

Fiquei muito tempo sem saber como continuar. Aquela passada, de outrora não existe mais. Como
uma luz que se apaga e uma nuvem que se dissipa. Tantas vidas eu tiver, nunca me acostumo com a
morte. E morro de curiosidade de saber como seria morrer. Nessa vida crua e dura, acreditar no
céu é comer sorvete de creme e se lambuzar com aquela textura doce. Mal não faz, meu bem.

Eu andei adormecendo e abri os olhos em Berlim. Andei muito mesmo, por ruas germânicas que eu
inventei, com gente que nunca vi. Tudo inventado, cada cor dos cílios, cabelo e nariz. Tudo meu.
E meus passos também inventados, numa vida que me para. Que me para. Numa vida. Eu andei muito
mesmo e fui parar numa praça. E lá só havia ferros. Contorcidos e pro alto. Como que plantados
no chão. Como que uma amostra do que a terra não faz nascer. E. E eu não entendi o porquê
daquela brutalidade. De tanto ferrugem, de tanto abandono.

Até que. Até que vi um amigo. E me disse assim: "... não, não. Não é feio o que tem beleza." E me
explicou que era especialista em ferrugem. E me explicou que cada uma era um por-do-sol. E
suspirou pelas cores, muito mesmo. E eu vi aqueles tons e louvei ao ferro, ao tempo, ao
desgaste. E vi como eu era cega antes. Laranja, marrom, cinza. Cor de chão, cor de céu, cor de
olhos, cor de folha. E meu amigo me dizia que Berlim era muito enferrujada mesmo. E eu achava a
cidade bonita. E uma vertigem me tomou e eu cai de mim mesma. E eu achei a cidade bonita. Mas
vertigem. Não. E medo do tempo. E eu não conheço Berlim. E eu andei muito mesmo. E pessoas que
nunca via. e. E. Não era um por-do-sol. E por que as pessoas morrem? E não quero que nada
acabe. A beleza existe. Há encanto. Cantos E sim. Não conheço Berlim. E quantas pessoas
eu posso inventar. E essa guerra toda e essa putrefação da vida. Os pedaços caindo. E vertigem
de novo.

Depois de um dia novo adormeci de novo e sonhei que se fechássemos bem os olhos e
acreditássemos que aquilo não era verdade, então todo o mal se dissipava. É que as pessoas
ficavam zumbis e tentavam fazer coisas sem sentido. Matar, nadar no mar muito fundo, parar de
cozinhar o almoço. E eu e minha irmã íamos consertando essa peste. Às vezes, a gente sacudia a
pessoa. Às vezes tinha que lutar mesmo. Mas a gente já fez judô, o que ajudou bastante no
processo. Ah, e muitas pessoas estavam se transformando em bronze e ficavam meio liquefeitas e
meio parecidas com uma moeda gigante derretida. Então, elas entravam no mar e começavam a nadar
bronzeadas, indo pra uma ilha qualquer, que eu esqueci agora o nome. Também era da minha
responsabilidade cuidar desse translado.

Já estava quase tudo resolvido quando descobrimos que havia um rapaz que estava zumbi e que não
comia desde então. Por algum motivo isso era sinal de que ele era muito muito poderoso. Todos
sabemos da força de vontade para sermos disciplinados em uma dieta rígida e sinto que em grande
parte isso é uma resposta plausível para que o temêssemos tanto. Fato é que o seguíamos de
perto. Só que ele tinha um exército de bonequinhos anões, que tacavam areia e tinham escudos. No
meio da batalha, surgiu um sábio - bem gatinho, por sinal - e tacou uma pedra de areia bem nos
peitos de um. Vários desapareceram nessa hora e aprendi outra regra do jogo: todos nós tínhamos
 botões que, se pressionados, nos faziam desaparecer, sumir, perder.

Eu estava crente que iria salvar o mundo. Só faltava acordar o grande líder anorexo. E pronto.
Mamão com açúcar. Mas aí, veio um doido que tinha matado o John Lennon e enfiou um garfo de
churrasco no pescoço da minha irmã. Já ia fazendo o mesmo comigo. E eu fiquei muito pesarosa,
estávamos quase lá. O que foi que eu fiz de errado? E naquele desespero de salvar minha irmã,
lembrei da primeira regra do jogo: sonhos não são reais.

E acordei. Sonhos não são reais. Sim. Tudo desapareceu. Todas as coisas boas que eu fiz. Eu
quase salvei o mundo inteirinho. Mas não teve jeito, pra sobreviver, uns trechos de nós
precisam deixar de existir.

3.11.12

Flor.ria.ah.nó.polis

Medo de Flores.

Antes de dormir tive um sonho: que o amor lambia meu nariz e que ele era caolho. Acabei adormecendo atrapalhadamente, sem saber muito bem o significado das coisas.

Acordei sem saber o significado das coisas. E fui dormir sem o significado das coisas. Bebi água de madrugada ainda sem entender, peguei ônibus ainda imersa nessa ignorância. Até que decidi: basta!

Mas não adiantou. E estou assim meio lerda das ideias. Com medo de flores. Saudades de um inverno que quase me congela a alma. E logo eu que vi tanto mar. Não há muito que eu vi o sol se pôr, e ambos parecíamos exaustos. Um existência longa e clarifeita. Ele mergulhou nas montanhas e fez um escândalo no céu: cor nuvem pássaro. Eu fiquei silente, pensando naquele sepultamento. E logo estrelas, lua lua. Lua.

E me perguntaram: há quanto tempo não vê o sol nascer? E eu fiquei pensando: dentro ou fora de mim, você diz?

É deselegante deitar aqui na areia ou na grama. É deselegante falar de amores meio desgastados e chorar, confessando que só queremos um xodó meigo e suave. É meio rude não se higienizar emocionalmente. E dizer que não, fazer que sim. Sonhar talvez, delírios, sempre sempre.

Ando com um pavor de sementes. Vejo-as e penso nas plantas, nas flores e frutos. E imagino se vai conseguir fincar raízes e, caso se finque, se não vão arranca-la e substitui-la por amendoeiras. Amendoeiras bobas, que quebram calçadas e dão sombras chatas.

Vai ver comeram metade do meu cérebro enquanto eu dormia e acabei acordando com uma esperança tola, com um gosto bom na boca e uma nascente dentro do peito. Tudo emergindo para o alto, sem porquê ou para quem.

9.10.12

Vejaí


Veja bem, às vezes a felicidade encosta na sua alma, como pessoa cansada no fim de uma tarde de passeio. Fica ali, pesando nas suas costas, naquele desconforto gostoso.

Veja só. As coisas vão bem. Vão para algum lugar. Veja que o futuro não é mais meu senhor. E o presente não é mais um caminho ou é sem sê-lo tanto. No en.tanto. Veja, o presente não é mais um túnel, é campo aberto. Mais fácil de se perder. Muito mais. Mais fácil de ser alegre. Muito mais.

Acho que agora você deveria vir aqui comigo. E a gente sentava perto daquela árvore e olhava o céu, cochilava até ele desbotar. E ficar rubro, rosa, roxo, verde. Até o céu ficar doidamente colorido, a gente poderia ficar aqui. E olhar o vento na grama. E ver aquelas flores. E deixar os insetos andarem nos nossos braços. Joaninha. E ficar com o corpo pinicando. Vai ser bom. Partir as folhas. De lá a gente vê o mar e pisca para tirar fotos. E armazena tudo no coração. E deixa lá. Como delícia mental.

A gente poderia conversar sobre rãs, sobre Habermas.
Mas não a gente não faz nada.
A gente não existe.
Mas
não tem problema, veja cá. A brisa é macia e no meu mundo há paz.
Mas acho
que você

5.10.12

Tão só mente.


Perplexidade é um rasgo na garganta, um beiço aberto na carne. As palavras se tornam impronunciáveis e só cabe o pranto. Lucidez é:

Lucidez é

Eu só conheço a loucura.

21.9.12

Voo sem assento



Vez por outra olho para o céu e fico imaginando como deve ser. Tocar as nuvens, como seria a sensação de ver os precipíos lá do alto. Pairar acima de tudo. De não ter medo do fundo e perder a dimensão do que é ser finito. Os céus são como uma gargalhada, carecem de limites, desmancham as fronteiras. Porque é imenso aquilo que não captamos com nossos sentidos. Aquele gosto que não cabe na nossa língua e aquela imagem que ultrapassa nossa visão. Quando as classificações  se dissolvem e desmaiam. Isso é imensidão. Uma pipa no céu é paz. A mão de um bebê é amor. É assim que eu vejo.

Silêncio não é pausa. Silêncio é a correnteza que cala. As melhores e as piores coisas só cabem no silêncio. O silêncio é o lugar do tudo, onde nascem e morrem todas as palavras, onde há espaço para o movimento contínuo e forte, onde qualquer tipo de linguagem é prescindível. O meu silêncio é sempre tão denso que prefiro falar, mas eu moro no não dito. Não é a mudez do outro que me incomoda, mas a nudez que se dará em mim. De ficar ali, despida, balançando em mim mesma, abraçada pelas minhas próprias melodias, toda íntima. Toda minha. Não, se me deixam quieta, leem tudo nos meus olhos, minha boca logo revela sorrisos encardidos, sonhos deliciosos. Não. É preciso falar e distrair, para sozinha, depois, repousar, exausta em mim mesma.

Talvez haja chegado o momento em que eu suba no palco de boca vazia, de traquéia morta. E me dê esse luxo de não preencher vazios. Os enxertos serão sempre destacáveis. Tente ver o quanto de mim eu não tenho.

De tanto ver, observei que de longe tudo é menor, como por um passe de mágica somos nós quem nos tornamos gigantes. E mesquinhos. O Himalaia não é nada diante da profundeza de nosso umbigo. Fazemos grande aquilo que podemos ver. Geralmente, mas nem sempre. A esperança funciona como uma espécie de passarinho que vive dentro do nosso peito e de lá não pode sair. O passarinho pensa que sabe voar e pensa que gosta do céu e pensa nas nuvens. Mas esperança de passarinho só sabe esperar. E esperança passarinho só é boa se faz cantar e se constrói ninhos e diz que nunca mais vai embora. Aí a gente se sente feliz.

Não existe nada mais triste do que estrangular um sonho e sufocar um futuro. É um aborto que escorre pelas pernas espalhando sangue e pedaços de alegria morta. Sangue e alegria morta. A sensação é de esganar o coração, colocar as mãos no pescoço do nosso peito e matar-nos a nós mesmos. A vida é questão de crença. E amor é delírio conjunto. Revisite isso com a razão e veja se não se perde o melhor.

Eu já não tenho bandeira específica. Espalharam cartazes por aí: não toque, não tente, não prove. Letras garrafais estabelecendo regras intransponíveis. Tão pequenino fica o espaço, tantas restrições que a felicidade fica espremida entre o medo e angústia. Perco o objeto, mas não perco a ação. Quero sim, tentar, tocar e provar, pois tenho para mim que a vida é curta e as pessoas não são eternas.

Desistir enfraquece a alma. Tenciono ser exageradamente feliz. Não quero passar por tudo isso e levar um souvenir da vida, um certificado de papel:"obrigado por participar". Não! Quero perder um dedo, arrancar verrugas enormes, um tiro na coxa, comer besouro, ter a barriga castigada de tanto riso, ter pelo menos dois dentes podres, ter um benzinho, filho, tatuagem e um fusca verde. Fico olhando para essas placas e pensando se vai ser sempre assim. Essa maldita sintaxe com sujeitos muito loucos. Só o verbo salva. Pois é.

13.9.12

a morte do velho


Por mais que evitasse, muito do que lhe faltava tinha a ver com mortes. Recentes e doloridas. Dorinha (chamo assim por carinho mesmo), se encontrava aérea a maior parte do tempo e ainda que se distraísse com uma ou outra alegriazinha boba, havia um canto bem fúnebre dentro do seu corpo.


Há alguns meses seu avô tinha morrido e, todos sabem, que avô é criatura divina, com cabelos brancos e ares de profeta. Dorinha andava sonambulando de dia, pois de noite sonhava com o avô, cada vez com uma doença diferente. Na noite passada viu seu velhinho sem pernas e muito sujo, num hospital público e enferrujado. Diante do quadro, Isadora não se desesperou; enquanto existe vida, resiste a esperança, pensava.
Foi logo dando banho, pondo ataduras arrumando o lugar todo e ele se sentiu feliz. Segurou forte na sua mão, respirando tranquilo. Foi difícil a batalha, ver tão jogado seu ascendente tão direto, tão geracional.

Não foi com pouco horror que acordou e percebeu que era tudo mentira e que já estava morto, enterrado e decompondo. Afundou na cama, com lágrimas infinitas e descontentes.

Seu avô morreu careca, mas com dentadura limpa. Semanas antes de morrer, Dorinha foi estar com ele, tentando transmitir tudo de pulsante que havia. E por isso escovou os dentes do avô, mais para fazer graça do que para fazer utilidade. Chegou no quarto faceira, dizendo: “Vô, escovei seus dentes”. Não falou que fez isso com o coração esmagado e debruçada sobre uma prótese morta de sorriso.

Desde então, o Jadinho procurava estar sempre com sua armadura de dentes, para que, se eventualmente resolvesse gargalhar, o fizesse aprumado. No dia em que morreu, a esposa só soube porque as dentaduras ficaram pendentes, depois veio a cabeça baixa. Mas, a dentadura foi o estopim da descoberta. O desencadear fúnebre foi por causa dos dentes. Dentes que Dorinha havia limpado.

Morreu também depois de tomar um copo de suco de laranja. E copo naqueles tempos era medida de coragem, pois seu corpo pedia mesmo eram goles. Mas ele quis copo, como que para esfregar na cara da morte que lutaria até o fim. Tomou. E morreu. Mas só morreu depois do suco tomado. E só abaixou a cabeça depois de morto.

Em vida o Jadinho era pequeno, menor que Dorinha. Estatura pequena, pensamento afiado. E se diz afiado. Fofo não era, lindinho tampouco. Era agressiva sua meiguice e seus carinhos eram abruptos como uma tempestade. Sua graça estava justamente nessa força e sagacidade imensurável, nessa capacidade de reação forte para qualquer tipo de questão.

Café da manhã. Todos comendo. O Jadinho reclama das formigas. Almoço, o Jadinho na pia, olhando fixamente para as formigas. Lanche. E então foi demais. Formigas demais. Dorinha ia para cozinha, quando, de repente viu o avô pronunciando palavras de ordem. “Agora quem sacaneia quem? Morram suas vagabundas!”. Com uma água fervendo matava as formigas da pia. Dorinha perguntou: “Que é isso, vô?”. “Ferrei com elas”, disse com aquele riso desmontado e com a vingança gostosa de quem prevalece no fim.

Durante o tratamento do câncer, na era em que ainda tinha cabelos. Aliás. Quão lindos eram. Totalmente brancos lisos partidos no meio: faziam uma curva que formava duas asas laterais, bem postas e organizadas. Quando os cabelos lhe caíram, logo depois morreu. Não sabia viver sem seus atributos essenciais. Naquela era, teve uma conversa interessante sobre tecnologia.

Havia voltado do Inca e relatava os absurdos inimagináveis que o computador pode fazer. “Fiquei umas duas horas deitado naquela merda, aquela porra girando assim perto da minha cabeça. Pensei: caralho, essa porra vai bater em mim. Mas não bate não. Como é que pode, né? Coisa incrível. Depois eu saí e já estava lá, tudo no computador para o médico ver. Coisa de maluco.” Dorinha fazia que sim, se divertindo muitíssimo com sua boca suja e com suas impressões, no que Jadinho continuava: “ Olha, minha filha, daqui a pouco ninguém vai morrer não. Vai viver tudo zumbi por aí. Não sei como vai ser esta merda, mas ninguém vai morrer não. Eles lá fazem coisa do arco da velha. Tecnologia, né?
É, não é brincadeira não, minha filha. Onde é que esse mundo vai parar. Porra, onde vai ter lugar pra essa cassetada de gente?”
Pelo que Dorinha respondeu: “Que gente, vô?”. “Porra, minha filha, presta atenção, esses filhos da puta que não vão mais morrer. Ficar todo mundo zumbi. Vai ser uma merda isso. Espera só. Só quero ver, vai ser uma merda.”

Dorinha riu alto, o Jadinho apertou os olhos, inclinou a cabeça, com raiva. Logo depois, riu, se rendendo. Acrescentou, depois de morder a boca (sentia dor): “Tecnologia, né?”. Dorinha teve vontade de chorar. De rir. Eles se amavam.

Cofres. Jadinho fazia cofres. Fez de madeira e pintou de branco. Com um pincel salpicou verniz. Dorinha tinha um cofre malhadinho, para juntar dinheiro. No começo todos se divertiam com o fato de que a criança não poderia retirar suas finanças, assim aos poucos, como fazia com os outros cofres. Jadinho entregou o cofre com um sorriso: “quero ver você abrir esta merda, coloquei tanto prego que...”. Dorinha olhava para o presente estupefata, enfim algo poderia dete-la, ela realizaria seu sonho de juntar, juntar, juntar. Um belo dia, Dorinha pegou martelo, faca e foi para o terraço. Tirou o tanto que precisava e calmamente repregou. Fez isso por muitos e muitos meses. Até que a madeira da tampa começou a se desgastar o os buracos guardadores dos pregos ficaram enormes. Era o fim. Dorinha não sabia consertar.

Sabedora que levaria uma bronca, foi mais corajosa ainda. Quanto maior a briga, de mais coragem se precisa: “Vô, conserta para mim?”. O Jadinho olhou surpreso: “Tu é uma filha da puta, hein, minha filha”. Consertou e ameaçou: “Não conserto mais esta porra não, tá me ouvindo?”. Dorinha ouvia atentamente. E ele consertava o cofre pelo menos uma vez por mês.

Ranzinza. Mandão. Nos últimos meses de vida resolveu fazer a unha. Atendeu a pedidos. Ficou bem melhor. Dorinha ficava lembrando disso. Do seu avô com frauda, do seu avô na escada pintando a casa. Lembrava das bermudas que ele usava. Na última vez que esteve na casa dos seus pais, seu avô usava uma camisa de propaganda, propaganda de cerveja.  Jadinho sempre se vestia impecável, aquela blusa por baixo da camiseta foi uma surpresa, um deslize. Dorinha riu. E para distrai-lo da dor e tosse, disse: “Vô, que camisa bonita!”. “Ah, minha filha, gostou? Eu dou para você”. “Era brincadeira, vô”. “Tudo bem, minha filha, eu dou, não tem problema não”. A voz dele estava sumida, a febre estava muito alta, eles estava sozinhos em casa. Dorinha pegou a meia mais colorida que possuía e pôs nos pés do avô. Pôs álcool, para diminuir a febre. Passava álcool no corpo dele, orava, e passava álcool naquele corpo magro. A febre se foi. Jadinho foi voltando dos delírios, olhou para o pé: “caralho, que porra de meia é essa?”. Dorinha riu muito. Ele fez cara de bravo risonho. Eles tinham esperança.

Mas morreu, o velhinho. E ela não parava de sonhar com ele, doente ainda. Meses depois da morte. Talvez porque quisesse cuidar dele mais um pouco, por puro egoísmo, extremo amor. No armário do Jadinho acharam um facão enorme. Descobriram muitos segredos gozados. Que pena, Dorinha pensava. Queria mais dele, que pena.

21.8.12

Unodios


Há uma necessidade que ultrapassa todas as fronteiras. A necessidade de conhecermos o celeste.
Ainda que se estabeleça e se finque em nós todo o conhecimento possível, o divino sempre está às portas, nos interpelando e querendo adentrar-nos.

Vez por outra, acham enjoado toda essa insistência de Deus e repetitiva toda essa dicotomia: luz, trevas; bom, mal. Particularmenete partilho a mesma opinião dos ditos infiéis. Talvez porque seja apenas mais uma deles ou, quem sabe, por mera falta do que dizer.

E já que digo, e já que ninguém me impede, prossigo dizendo que Deus, Cristo e toda essa estória de redenção é muito mais tenebrosa do imaginam os desatentos. Isso porque o tal plano da salvação se baseia em amores sacrificiais, morte de Deus, ressurreição do dito cujo. Dá bastante pano pra manga, pode acreditar.

Se você me perguntar se confio nessa sandice toda, lhe respondo prontamente que sim e com o maior prazer. E é muito simples de entender, tudo tem um quê de loucura mesmo e se for para ser partidária de uma, que seja uma doidice bem fundamentada.

Deus, para mim tem lá seus fundamentos. Parecem-me inclusive, como as raízes de uma árvore enorme: profundas, sólidas e dignas.

Adianto logo que não tenho nenhuma pretensão de convencer ninguém sobre a existência e a necessidade que o homem tem de Deus. Em minha opinião, isso é ponto ultrapassado. Quer queira, quer não, é realidade fática. O gostoso se dá justamente nesse papo mole, de perceber em Deus a fonte de tudo o que é bom, daquilo que nos aquieta a alma, alimenta a mente. Nutre.

Se não fosse tão incorente usar, no mesmo texto, o mesmo exemplo para coisas distintas, eu diria que nós somos raízes e Deus é nosso solo. Há uma infinitude de nutrientes, vai de cada um captar, sugar dEle e se tornar mais forte e produtivo.

O que me impacienta nessas conversas sensatas que temos (sobre Deus, o tema hoje é esse), o que me impacienta é essa hipocrisia de adiantarmos que não somos interesseiros, que não queremos, de maneira nenhuma, nos aproveitar do Todo-Poderoso. Aquilo que ele der está bom, e como foi feito, feito está. Então, desculpe a crueza, é que o erro engole o acerto e perde-se tempo para nunca mais tê-lo de volta. Ora se Deus vai se importar que você peça de um tudo a ele e fale de todos os assuntos e comente cada cor de flor?! Penso que ele gosta bastante dessa interação, dessa comunicação e, oh, por que não dizer: amizade.

Sinto um medo de quem não quer incomodar Deus. Como se ele fosse um velhinho, meio surdo que não devemos acordar na soneca da tarde. Parece que Deus assim, está eternamente vestido em lençóis, andando vagarosamente em uma estrada nublada com gelo seco. E haja gelo seco para um Deus tão etéreo.

Infelizmente, meus pensamentos são mais carnais. Imagino Deus comigo enquanto como. Na hora de atravessar a rua e na liquidação do supermercado. Vejo Deus, nos seus atributos, estalando um céu azul e borboletando vermelho por entre jardim. No riso da criança. Ali ele está. Naquele trocador engraçado. Olha Deus ali. No consolo de um sepultamento. Firme como uma rocha. Nos desastres da vida, leve como pena.

Deus tem cheiro sim. E cheira a tudo de bem. E tem forma, com certeza, ao invisível que meus olhos captam.

14.8.12

El pájaro


Hoje estava andando pela rua e reconheci Quitério. Aqueles cabelos ondulados e lustrosos, todos os fios cuidadosamente ordenados para trás. Não havia mais topete. E aqueles olhos: imagine uma floresta, com todos os tons de verde e marrom. Era assim os olhos de Quitério. Sempre lembro dos dias solares, quando seus olhos absorviam todas as cores do mundo.

Tamanho foi meu espanto quando atravessando uma passarela, lá perto do céu, vi Quitério na calçada, usando a mesma roupa de sempre. E os mesmos sapatos e o mesmo ar melódico. Mas seis anos se passaram, como tudo aquilo poderia subsistir? Da última vez que nos falamos ele me garantiu que estava às portas da morte e não havia nenhum meio de sobreviver.

Reconheci a muda de roupa, era a que ele usava para encontros amorosos, resolvi segui-lo. E lá estava ele, caminhando, usando os mesmos passos de sempre. Entrou num parque, riu para um pato e sentou num banco. Parecia feliz. Começou a roer unhas. Parecia ansioso. E uns muxoxos sairam estalando de sua boca. Chateado. De repente a mulher chegou, linda! Não, nem tanto. Bonita. Um pouco trivial. Cabelo meio morto. Mas tinha lá seu valor. Deveria ter.

Involuntariamente me vi como que andando no passado. Os gestos, as palavras e até o amor dele pareciam iguais. Os poemas declamados, as pausas e as confissões. Eu mal podia acreditar. E senti como se um raio me atingisse e passei a ver com os olhos dele. Aquela mulher antes tão viva, agora tinha ares de espectro. Parecia uma sucessão de imagens sobrepostas. E me vi lá, fantasmagórica. Eu era ela também. E fiquei imaginando em que tempo estávamos. Não conseguia mais distinguir-me das memórias.

Pobre Quitério vive parcamente com um amor sempre podre pendente no peito. Com sensações velhas escorrendo, com expectativas caducas. Os pés virados para frente, a cabeça voltada para trás. Fica dando voltas, sem percorrer novos caminhos por medo de ficar perdido. Coitado, perdeu-se a si mesmo. E agora fica vestindo as mesmas atitudes. Sem saber que viver é reinventar-se.

Um passarinho. Fiquei olhando um passarinho.

Quitério é antigo e infeliz, lambendo vômitos diariamente. Preso nessas cadeias invisíveis. Amando através de rituais. E lembrei de um jovem rapaz, com os mesmos olhos de floresta, prestes a entrar nesse mesmo labirinto. Meu coração doeu. Um silêncio fúnebre se instalou, como a morte de um ente querido. Foi quando percebi um passarinho olhando para mim - que definhava em aflições. Ele veio, pulando, calmo e bonito. E se colocou nas minhas mãos abertas. Aquilo parecia um sonho, trouxe o pequenino para perto do meu rosto e me acariciei nas suas penas.

 Então ele se foi. Ergueu-se no ar, buscou um galho alto e cantou assim:

"As asas da esperança
enterram abismos.
Não tema,
não tema passarinho."


11.8.12

Mate


Eu sempre tomei mate leão. Mas mudei, porque eu sou livre, radical e aberta ao novo.
Agora compro mate aos quilos nas Casas Pedro. Compro chá verde – e nunca tomo. É bom pra celulite. É o que dizem. Mas eu nunca tomo. Comprei pimenta também. Pimenta é bom para o coração e outro dia senti meu peito doer. Pode ter sido gases. Isso é. Isso é tão indigno, essa dúvida: “será que morro ou peido?”

Agora. Eu deveria estar estudando ou praticando meditação. Mas falar sobre peido é fantástico. Peidar na água melhor ainda. Aquelas bolhinhas. Você lá, no mar, uma flatulência secreta e selvagem. Sim, você é totalmente selvagem também. Eu tenho uma amiga que adora tirar meleca. Certo. Eu gosto de limpar os ouvidos. Os meus. Com cotonete mesmo, higienização total, muitas vezes ao dia. Um vício.

Percebe? A vida passa e a gente peidando por aí. A gente peida até em igreja, em tempo de matar os anjos sufocados. A gente peida no próprio lugar onde vive. Coisa terrível! Melhor do que xingar ou babar nos outros, isso sem sombra de dúvidas. Peido é coisa muito nossa. E já parou pra pensar a quantidade de coisas que ninguém pode fazer por você?

Ninguém pode falar com sua voz e ninguém pode amar por você. Ninguém pode nutrir suas esperanças e essa gargalhada que você tem presa na garganta só sai quando sua alma ri. E por que ela ainda rindo tão pouco, a sua alma? Por que os problemas acamparam no seu peito?

Venha aqui, meu bem. E pense leve e alto, feito pipa sinta comigo as nuvens. Venha que eu construo um paraíso de palavras para você habitar. Diga seus sonhos que faço deles sua cabana. O meu dom é ser jardim. Eu faço florescer os encantos. Eu sou sua flor. Sou semente e pétalas. Sou brisa, meu amor. Deite aqui, feche seus olhos e descanse. Está tudo bem. Sou rio. Sou tudo. E nada mais.

Isso é tão indigno, essa dúvida: será que morro ou montanha?

7.8.12

See saw


Por onde começar? Talvez com uma música ao fundo. Com uma viola tocando afinada, uma mulher espanhola com cigarro na boca e olhos murchos e um pandeiro, tocando, tocando. E uma paçoca empapada na minha boca. O ônibus passando e levantando poeira. Um cara ensebado sentado de perna aberta na calçada, um cachorro que mija na bicicleta.

Ou quem sabe o melhor cenário fosse um lago de gelo. Com focas sufocando lá embaixo e um esquimó perigoso afiando uma faca, comendo peixe cru. Um lobo lambendo as patas no Ártico.

Por Deus! A vida é tão rotineira. É escovar os dentes todos os dias, muitas vezes.  E beber água, muita água. Lava o cabelo. Mas o cabelo suja. Sorri. Mas depois chora. Lê para imaginar a história dos outros.

Não eu, ah caro capanga do faroeste, resolvi inventar coisas na minha cabeça. E para um cachorro mijador invento jatos venenosos exterminadores de formigas cósmicas. A mulher gorda que corre na orla: uma alienígena macrobiótica intergalática.

Cada um se vira como pode. Talvez você tome psicotrópicos, não corte as unhas, em depressão: profunda! Eu não. Eu invento. E minha última invenção foi acreditar que em breve vou receber boas notícias. E acordo cedo e checo: se meu cabelo não cresceu mais do que o normal, pego o extrato do banco para ver se não ganhei muito dinheiro, pergunto aos meus pais se eu sou a filha favorita, vejo se a mercearia não está vendendo batata palha mais barato. Porque alguma coisa boa tem que acontecer. Nem que seja eu aprender a dançar bolero. Andei ouvindo que a vida não é só lamento não.

Então, como andei envolta de lamúrios devem estar chegando as boas novas. Logo logo. E eu tenho que estar pronta. Me acostumando a sorrir muito e ter um slogan de sucesso. "O importante na vida é acreditar."; "Malhe os glúteos, sempre." Algo que remonte a tempos antigos e dê a impressão de perseverança. Porque eu decidi que vou ser perseverante.

Certo, e você aí me olhando com essa cara de nojo. Todo entediado, come mais chocolate que arroz, já tem acne até dentro do nariz. Deixa essa esperança florescer dentro de mim, oras. Que mal faz ser feliz no meio do sofrimento? Que mal faz acreditar que o dia nasceu pra me dizer" bom dia, chuchu"?

E a realidade não é cheiro e gosto? E o cheiro cada um sente por si e o paladar só apetece a mim. Tudo meu. As sensações são minhas e delas construo um mar de delícias. De faz de conta. Essa coisa rala e monstruosa que é o medo. Medonho medo. Medo de abrir o peito e ir aos limites de nós mesmos. De sentir nossas vísceras e inalar todo o ar do mundo. Medo de perecer de alegria. Medo. Medo.

Não se engane. Desistir não machuca, desistir é engolir-se a si mesmo, sem mastigar. E viver dentro de si, confortável, sem ter que se esfacelar. Desistir é tomar café depois do almoço, com pernas cruzadas e vendo tv. Não é nada demais. É comer comida da avó. É continuidade.

Eu não. Sou nova demais para esse hábito desgraçado de ficar onde caiu. Já levantei e dei uma volta no quarteirão. Para ver a vizinhança do meu peito. Apenas uma queda. Uma queda fenomenal. Daquelas que mata muita gente, mas eu, só me matam mesmo quando eu morro. E não estou com disposição de morrer por enquanto. Jovem demais para essa rotina remelenta de defunto.

O bom de viver sem estar morrendo é que a gente pode gargalhar, mesmo no meio desses destroços, a gente pode rir a beça. E com um riso no estômago a gente vai lançando os pilares de novo. E faz ainda melhor, planta ainda mais flores. Além do que, com Deus fica meio difícil de se infelicitar: se tudo der errado ainda tem o céu, com toda sorte de pães doces celestiais.

Entendeu?

Então relê. Ou inventa.

18.7.12

Meu bem

Vez por outra a vida se espatifa. E parece um caminhão descontrolado vindo em sua direção. O problema não é quando ele esmaga sua cabeça no asfalto, seu cérebro fica esparramado pelos pneus e seus dentes ficam espalhados no chão. O real problema, meu companheiro, é quando o caminhão leva uma parte de você e você fica ali, incompleto, com a boca meio aberta, sem acreditar. Sem acreditar que aquilo é possível.

A gente fica assim meio cambaleante, sem saber se a ferida que se carrega é do tipo que sara ou do tipo que mata. E se a gente é forte o suficiente para viver ou para morrer. O sofrimento tem a sutileza das asas de uma borboleta.

Mas e agora?

Agora, meu bem, feche os olhos. E pense. Nada é tão mal que não se possa ter esperança. Durma um pouco. Deixe chover dentro do seu peito. Meu bem, feche os olhos. Descanse. Deus está bem aqui. Se aconchegue em boas memórias e espere. Nada é tão ruim assim. Prometo. Há sempre um sol. Há sempre estrelas. Deixe estar, deixe estar. Meu bem.

17.6.12

Sem títulos


Rápido demais.
Coração sai pela boca.
Coração, coração.
Coraçao cai pela boca.

Sai.
Cai

Coração sai bela boca.
fala.

.
Pela boca. Rápido demais.
bela
Demais, coração.
Sai, cai demais, coração.
tropeça demais
coração.

coração para
coração para quê?

3.6.12

Antes de dormir


E as coisas nunca mais serão como antes.
O lugar onde fomos não existe mais. As cores que beijaram nossos olhos. Não serão as mesmas.

E os sorrisos se abrirão de outra forma. Nossos novos dentes rasgarão o passado, mastigando o que foi. E o que foi bom.
Foi tão bom. Ficaremos carecas de novo. Nossa mão será pequena, ornada por unhas mini.núsculas. E nossos pés vão voltar a crescer, ciclicamente.
Nossos avós estarão vivos, falantes. Mas sem existir. Os nossos filhos terão nomes e sapatos.

Um ressurgimento louco. Você me verá mais velha. O tempo que eu espero vai matando a desesperança. Cada dia é mais perto. De ver de novo. A encarnação do meu sossego.

E como deve ser o céu?
A partir de quando isso vai acontecer?
E quando posso descansar. Sim, o seu ombro é bom. Sim, minha cabeça dói. Ah, será para sempre. Como dormir em nuvem. Não, sem medo. Meus avós viverão. Aquelas flores coloridas. Serão outras mais bonitas. E eu vou lhe ver de novo. Mais velha. Bem mais velha. O tempo demora. O sono começa a. Minhas mãos pequenas.

Aquele cheiro de terra. O capim cortando minhas pernas. minhas  pernas. corre; corre! corrrrro! aaaarrrr corro muito. pulo pedras. O barco está chegando. Venha, rápido. Já ouço o som. Sem tropeçar. Chegamos antes. Lá vem eles. Vamos mergulhar um pouco. Fomos no farol. Lá em cima.

As cores não voltam. O vento mora nos meus olhos. Aqueles beijos. Na testa. Boa noite. Na boca. Te amo. Nos olhos, minha pequenina. Sussurro: volta logo.

Aquela música que você cantou para mim. Não importa. Vai ser para sempre minha, por mais que você se vá. Por mais. Tudo é meu. Todos os pensamentos. As sensações. Os espirais. Os choros, gargalhadas. Misturadas. Confusas. O mar. Oceanos. Mel. Suco. Areia. Manga. Lábios. Lábios. Corre. Arfa. Se esconde.

O sono vem.

25.5.12

Quando nós nascemos

Eu lembro bem do dia em que anunciaram o nascimento da minha irmã. Eu não sabia muito bem das coisas. As pessoas me direcionavam e me davam espaço. Como sístole e diástole. Põe sua roupa nova, sua irmã nasceu. No hospital? No hospital. Eu pus a roupa e esperei. Os adultos se aprontarem. Quem eram os adultos? Só lembro das pernas, andando. Excitadas.

Aliás, isso me faz lembrar a primeira vez que eu consegui ver além do balcão do banco. Banco Nacional. Faliu.  Pois é. A primeira vez que pus por meus olhos no ser bancário, por mim mesma, sustentada pelas minhas próprias pernas, eu lembro. Todos as vezes anteriores meus pais me suspendiam. E suspiravam: O que você quer tanto ver?...Eu quero ver, ué?! O outro lado. Como as coisas são.
Meu pedido era tão genuíno que eles me suspendiam sempre. O funcionário sorria para mim e três segundos depois a situação era insustentável, minhas axilas já estavam ardendo. Dói ser levantada pelo suvaco. Toda minha existência era apoiada nas minhas axilas infantis, precisei ter suvacos fortes para enxergar o mundo. Por uns instantes.

Eu tinha problemas práticos a resolver dentro da minha cabeça. Muitos adultos haviam tentado me conscientizar que eu precisava ser uma menininha boa e ajudar mamãe a cuidar da irmãzinha. Por que tantos diminutivos? Elas encolheram por algum acaso ou só para demonstrar como elas eram fofinhas, muito fofinhas?
Não iria ser fácil. mas prometi a mim mesma me manter limpa, sem pirraças, dividir bonecas. Ok, tudo o que meu ofício exigisse. Eu me renderia. Mas onde ela estava? Eu precisava colocar um nome na minha irmã. A coitada tinha nascido sem nome. E eu não sabia se ela mais para Patrícia ou mais para Gabriela.
Gabriela. Quando eu vi minha mãe no hospital. Não, não. Primeiro vi freiras. Eu tinha medo de freiras e meu pai falou que se eu corresse pelos corredores, elas iriam me pegar. Mais medo de freiras.
Gabriela. Eu vi minha mãe no hospital deitada, deitada na cama, na verdade. Ela estava cansada. Pegou a Gabi pequenininhazinha. Ela era mesmo fofinha. Podia ficar com todas as bonecas.
Cuidado, Viviane, ela é muito pequena. Pega na mãozinha dela. Eu estiquei meu dedo e ela agarrou.
Ela agarrou mãe! Ela agarrou!!
Bem, esse foi nosso primeiro aperto de mão. Eu era criança, mas eu já conhecia alguns símbolos das pessoas maduras. A Gabriela era muito madura para idade dela. Ela queria uma parceria. Eu aceitei. Depois, ela me mostrou as gengivas. Jesus! Ela não tinha dente. Meu deus do céu, mãe quando nasce cabelo?
Era ria toda hora. Que bebê simpático, Elvira. Minha mãe é Elvira. Era mesmo. Eu acho que nunca deixei a Gabi cair. Quando pegava ela no colo, eu sentia meu coração endoidecido. Disparado dentro do peito. Eu vi que Deus tinha me criado aos poucos e aquele dali era um pedacinho que faltava. Eu tenho outro também. Pedacinho irmão. Pedacinho de céu-menino. Vaguinho, meu amor. Quando eu pegava Gabi no colo eu tinha quatro anos. Morria de medo de esmaga-la. Mas era melhor do que ela escorregar dos meus braços. Aí eu apertava. Devagar, Naninha. Minha mãe me chama Naninha, quando ela me vê pequena.
Devagar, não deixa cair. E ela mostrava aquele sorriso de velho pobre, sem dente, nem dentadura.

Eu acho que Gabriela se tornou dentista porque ela nasceu sem dente e carecia disso para um sorriso completo. Ou porque ela sabe como é ruim a gente querer sorrir e não poder. Aí ela virou engenheira de sorriso. Para rir é um pulo. É só olhar para ela que sua alma fica morna e naquele aconchego, você ri. E quando vê que ela vai existir para sempre -minha irmã é eterna - quando você vê que ela é infinita, você gargalha.

Mas não foi sempre bonita. Avisaram que minha família viria visita-la. Bisavó, tio tio tio tio tio tias. Amigos da firma. Amigos vizinhos. E ela continuava sem cabelo. Já fazia uma semana e sem a Gabriela falar nada. A voz dela não saía direito. Iria ser um fiasco.
Me adiantei. Pulei no berço e arrumei, deixei um pitel. Fiquei satisfeita.
Minha bisavó foi andando sozinha, vagarosa até o berço: Santa Maria, a menina está verde e toda machucada! Minha avó não enxergava bem. Todos correram. Eu também. Mãe: que isso?! Minha mãe também não enxergava bem. Gente, resumi: é maquilagem, ela estava meio feia antes.
Objetivamente, eu achava que estava melhor. Tinha ganhado meu kit de plástico. Usei o perfuminho quase todo na Gabi. A sombra verde escapou um pouco nas pálpebras e se estendeu até as bochechas e o batom - ela mexia demais a boca e tinha muita baba - o batom também ficou a mais, também até as bochechas. Tudo acaba nas bochechas da criança. Deve ser por isso que beliscam-nas tanto.
Minha mãe ficou brava, a Gabi só tinha 5 dias de nascida. Eu poderia ter matado, etc, etc. Mas eu sou louca de matar minha irmã? Cada ideia.

Bem, foi assim. Depois ela cresceu, ficou pequena, loira e pequena. Eu, grande, morena e grande. Hoje em dia pensam que somos gêmeas. De alma deve ser. Cada ideia.

Ela está ali do lado. Tirando um cochilo. Dormindo encolhida. Me emociona ve-la grande, com voz, cabelo, dente. Ela superou a fase ruim. A sensação que eu tenho é que, em grande parte, eu vivo e morro por ela. Essa é nossa parceria, foi isso que eu entendi dos olhos dela, apertando meu dedo, há muitos anos atrás.



17.5.12

Caramba


Decantei em mim mesma. Deicanto a mim. Uma perna estava mais curta, o braço encolheu. Resolvi estacionar aqui no papel. Em tempos de guerra, melhor tirar uma soneca. E assim me quedei, de perninhas cruzadas e mãos enfiadas na areia geladinha. Estando parado pouco importa se estamos meio mancos. Não é imporante que não possamos correr. Parados, temos todos o mesmo potencial: eu e o paralítico. E ninguém sabe de nada. E até eu fico a elocubrar se posso ou não andar bem. Viro-e-mexo-esqueço as respostas das dúvidas que criei.

Esposei-me. Casei-me com minha outra metade- me. Meio frustrante saber que sua outra metade é você mesmo. Um pressuposto para lá de banal e para cá de extraordinário. O outro é externo e metade não pode ser exógeno, para ser constituinte é preciso ser parte. Metade é parte. E parte de você mesmo, só você mesmo. Nos nós cabe o outro, em mim, só eu mesma.

Esse presságio da minha própria completude me caiu como uma bomba. Concluir-me indivíduo. A perna estranhou os passos, braços se dependuraram de outra forma. Como que dizendo: pelo o quê andamos procurando? Eu sempre estive aqui!

Aí parei um pouco para refletir-me. Ao que parece, sempre estivemos em plenitude, não nos falta nada à existência. Mãozinha na areia, perna cruzadinha. Caramba.

14.5.12

Ludovico canta com as mãos

A brisa se esfrega no meu hálito, como que beijando as palavras que ainda não nasceram em mim. Abro bem a minha boca, vem nascendo um discurso. E eu danço de estar parada. Sem querer mexer, sem querer pausar, com medo de quebrar esse silêncio en.cantado. Esse silêncio que nos pare, esses ruídos que nos perseguem como espiral ensurdecido.

A vida vai passando e deixando em nós vestígios de conversas mortas, de momentos-rios. Como que correntes que fluem em nosso interior e nos gargalham por entre as entranhas. E nos deliciam com frescor. Músicas feitas de pétalas.

E quando se pede teoria, as palavras faltam e só vem um nó na garganta. Um grito que rasga céus e infernos mas não diz nada aos outros, nosso monólogo de alma: nosso tiro, a última bala. No vão. Aquele pranto sem lágrimas, aquela voz que nem é mais nossa. Dizer, queremos voar, mas algo prende nossos passos, devora nossa língua.  Há algo. E, mas. Prende e arranca nossos ventos. E mata, revolve nossos sepulcros.  E mais. Há algo. Por certo, de errado.

Vem aqui e sussurra quietude nos meus ouvidos. Me dá palavras-rosas, tira os espinhos. Cura meus medos e me faz adormecer. No teu colo, com cabelos para o ar. Sentindo nuvens nos pensamentos. Sentindo carinho na existência. Vem e me acalma e vem. Vem. Come as distâncias, engole os caminhos, arruina os obstáculos. E te assenta no meu peito. Mora aqui dentro de mim, sem nunca partir. Ensina como é feito o eterno e qual o sabor da esperança. Como são flores nos olhos e de quantos suspiros é feita a felicidade. E não me deixes esquecer. Não esquece de mim, que tenho coração pulsador de teus delírios.

Ludovico

18.4.12

Cúmplice

Não se engane, todos estão a procura de cúmplices. Amor é questão de co-autoria:  são duas pessoas sendo a mesma arma: um engatilha, outro dispara: ambos se deslumbram. É a fusão de medos e o engolimento de distâncias. Cumplicidade está longe de ser um caminhar de mãos dadas às margens de um riacho. Não. É estar pendurado num abismo, mas ter quem te sustenha. Alguém que suporte seu peso. E que te segure, é ter alguém que te reconheça como sua própria alma. Imprescidibilidade. Um esgotamento, um campo aberto, um espaço livre para correr. Um recreio, um balançar de pernas.

É quando alguém se debruça na sua existência e verte sobre você riquezas e fracassos. E se desmantela todo, se desintegra diante dos seus olhos. E depois se remonta, explicando seus segredos, dando chaves, revelando encaixes, diante dos seus olhos incrédulos. Sem agonia. Uma nudez calma de ser para alguém. De ser mar navegável pelo outro. É transferir-se de corpo, é deixar seus pensamentos roçarem nos pensamentos alheios. Unir-se para um crime, planeja-lo em conjunto, conjecturar, temer, junto, perto, arfando, sentindo o hálito, chorar de medo, abraçar consolando, sem saber respostas, sem abandonar as esperanças. Duas pessoas a mesma arma. Duas pessoas uma pessoa só. Sem caber nada entre. Sem finais tristes.

19.2.12

Ah marzinho

Eu não esqueço a primeira vez que Letícia viu o mar. Tinha 12 anos. Caiu ajoelhada no chão e afundou as mãos na areia. Como quem perdeu o parâmetro da vida. Como quem não entende mais nada de coisa nenhuma. Abria e fechava a boca. “Aquilo é o mar?”, “É”, “Nossa!”. Nossa,

eu pus as mãos nos ombros dela. Peguei uma mão, depois a outra e depois peguei os olhos dela, por fim os ouvidos: “Vamos no mar”, “Não, do mar só quero um espio”. Mas eu, criatura imune, empurrei seus passos para as ondas. Empurrei boca, joelho, cabelo, língua. “A água tem sal!” e “O mar se mexe comigo sozinho”.

Que tipo de bicho humano era aquele? Um ser sem ah mar. Sem rio. Sem ter tido nada nunca liquefeito. Chorar não podia. Cuspir tampouco. E se sorria era com uns dentes sem saliva. E se suava, já era evaporando.

Porque quem não viu mar, não conhece oceano e quem nunca oceanografou-se não faz ideia do infinito que cabe em um lugar. E também quem nunca rio, nunca navegou. E nunca teve beiras e nem cascatas e nem carruagem.

Letícia era gente de terra (a)batida. Daquelas que a esperança vira pó ou vira lama. Letícia tinha olho amarelo, não comia miolo de pão e tinha chinelo maior que o pé. Que é para poupar. Que é para crescer e ainda ter lugar. Pessoa de futuro feito. De morte certa. De dor agendada.

E tudo isso por não ver o mar. E tudo isso sem navegar seu corpo. Sem onda nem frequência.

Foi então que eu revi o mar e era vermelho. E tinha olhos mutantes. E navegava com os pés na terra. E navegava mesmo com todas as âncoras do mundo. Não sei como, não sei, não imagino como se faz para cantar em silêncio. Mas aquele mar sabia. E cantarolava, sem titubear nem um tantinho, me enrolava em flores.

E quando eu vi esse mar gigante se desenrolando para dentro de mim, entendi Letícia. Lembrei dela e me compadeci de mim mesma. Fiquei triste da vida ser tão pequena e meu coração ser tão miúdo para caber tamanha felicidade. E agarrei a areia, fiquei desfazendo as pedrinhas com os dedos. Como Letícia. Sem acreditar naquele mar dentro dos meus olhos. Aquela azulidão. Aquele mundaréu de beleza encarnado.

Fiquei imaginando como se vive depois disso. Olhava para meus pés sem ver os dedos, para o meu rosto sem ver os olhos. O mar se mudou para dentro e sou toda correnteza. Sou toda nada mais. Nada mais me resta para lembrar, agora sinto nos lábios um gosto novo de vivitude.

Ah mar rio. Aguardente. Letícia viu o mar e eu carrego oceanos dentro de mim. Que bom. Que bem. Bombembom.