28.11.09

Be bum

Delícia.


Segui um bêbado que balbuciava todo arquejado. Foi andando na rua meio escura. Sem medo, persegui aquele trocar de pernas e farfalhar de braços.
Debaixo de um poste, eu vi uma cena mais linda que a fusão de três estrelas.
O bêbado estava era inebriado. E o seu corpo estava era cintilando.
Não balbuciava, o homem, cantava e não era de desequilíbrio os seus movimentos, mas de uma dança fantástica.
Ele tirou seu chapéu e balançou seu corpo. Abriu um buraco na rua e de lá tirou um violão, fez nascer um banquinho ficou ali. Tocando uma música tão cheia de sons.
O homem era bem moço e seus olhos azuis inhos. Brilhavam feito o mar outonal.

Imagine! Aquela luz postular e um moço-homem dedilhando melodias. Na medida em que ele abria a boca, os universos cantavam para ele. Ele tinha um cabelo de ouro. Um paletó cinza, com um lenço vermelho.

De repente, ele se levantou, mas a música não parou, porque até a realidade queria ceder. Ele veio todo maleável, me pegou pela mão e me mostrou como se faz o impossível. Nós dois ficamos embalando o tédio, empacotando tristezas, incinerando desolações.

Ainda hoje me lembro daquela noite, gosto de pensar em como a fantasia reinventou minhas verdades.

20.11.09

Zumbi

Tem horas que a gente cisma e é um sacrilégio daqueles. Veja bem, hoje é dia de Zumbi, assim, sorumbáticos mesmo, comemoraríamos o dia. Da consciência negra. Eu, meio pálida, fiquei observando a falta de honraria.

É que hoje, caminhando pelo meu bairro Americano, vi uma feira. E pensei: “Ora essa, não é feriado?”. Não. Ó, não! Meu corpo tremeu todo diante daqueles melões e morangos e laranjas. Uvas sem caroço. Bem no dia de Zumbi, ali, sendo comercializadas. Frutas em troco de dinheiro. Aquele capitalismo selvagem, de pessoas com olhos coloridos, com caldo de cana dentro da boca. Fiquei horrorizada.

Foi quando gritei. Larguei a bolsa que carregava, abri a boca bem pro alto e gritei. “Não!”. Enchi os pulmões e prolonguei as vogais o máximo que pude. Mas não deu certo, não deram a mínima bola. Meu descontentamento foi enorme quando uma jovem senhora pediu licença, porque queria ver os kiwis e eu estava na frente.

A minha reação foi correr, procurando meu lar. Chegando, vi meu irmão dando banho na cachorra. Ufa. Banho em cachorra. Só em dias especiais. Acredite. A paz então recobrou seu espaço e me aquietei.

Almocei. Fui dormir. Aquele soninho dos justos. Cochilei suando no verão que se instalava no meu quarto. E só acordei porque, pasme, um senhor começou a gritar na minha janela.

Atordoada e de pijamas ridículos, eu disse: “Meu senhor, eu estava dormindo e o senhor gritando me despertou. Fale em voz silenciosa, por favor.”

O senhor me falou: “Querida, sou vendedor de flores, não gostaria de comprar pétalas?”

Sonolenta, respondi: “Mas hoje é feriado, é dia de fazeção de nadaísmo.”

Resignado, o vendedor proclamou: “Então lhe vendo flores em botão. É flor de nada.”

Perguntei: “E quanto custa?”

O vendedor sorriu: “Custa um amor.”

“Não tenho.”

“Nenhum? Nem no passado?”

“Serve do passado?”

“Não.”


O vendedor ficou todo triste olhando pro chão e arrumando as pedrinhas com a ponta dos pés. Até eu fiquei decepcionada, logo num feriado tão consciente acontecer uma coisa dessas. Passou um tempinho e o sol começou a murchar também, o céu ficou todo desmantelado, deixando as cores escoarem pelo horizonte. Como já estava anoitecendo, resolvi permanecer de pijamas.

Sentei do lado da cama. O vendedor permanecia lá fora, empunhando as flores. Sentou na calçada. Quando a noite chegou mesmo, a lua veio fininha, pois estava desanimada com a notícia.

“Falta à moça um amor”, diziam.

Lá estava a lua. Fingida. Toda boazinha e delicada.

O vendedor começou a cantar, era uma música tão linda. O vento se sentiu mais leve e começou a soprar a melodia. Eu fui ouvindo. Ele cantava sobre amores extensos e profundos. Sobre pegar de mão, sorriso trêmulo.

E eu lá sentada, na minha cama de madeira. Com lençóis de cor clara. O pesar não se colava no meu peito, pelo contrário. As ondas do som fluíam e meu cabelo ficou mexendo suave. Gostoso.

 Acabei adormecendo de novo. Dia de feriado sempre me bate um cansaço. Lá dentro dos meus olhos fechados, senti me beijarem a testa e me falarem baixinho: “Um dia lhe trago suas flores, meu bem.”

16.11.09

Esquina

Outro dia parei na esquina da minha alma
e fiquei
ali
aguardando quem cruzaria aquele espaço.

Não houve pessoa corpórea
quem apareceu foi uma figura mitológica
ele tinha nariz de plástico vermelho
cabelo de peruca, em dois tufos
laterais
a boca dele era pintada e
nos olhos havia desenhos
a sua roupa era colorida
com bolinhas
e pendurada por um suspensório
roupa que se segura nos ombros

dentes amarelos e
aspecto de fantasia

seria lícito aparecer um
palhaço
quando estamos ouvindo piano e com ares de quem
fuma um charuto de flores?

que gracinha
que tamanco saltitante
sapateado
na esquina de mim: um espetáculo informal
do que seja simples e antigo

o palhaço ri pra mim
uma menina sapateia
eia! Sou eu! Com aqueles sapatos
sou a pareja dele
e juntos

balançamos o corpo numa dançazinha ridícula
daqueles que se divertem

de repente
recomeça aquela música clássica
lenta
com coro
e em francês

de repente
em um reflexo inesperado
eu me crio asas
e o palhaço vira
aurora boreal

que lindo!
aquelas nuvens de céus
percorrendo meu corpo
seria isso amor?
ou poesia?

- imaginação! – grita o palhaço.

depois de passado tudo isso
depois dos olhos abertos
depois que desdobrei a dita esquina e a fiz rua reta

me rio eu
me deságuo toda
me percorro

em sensações inventadas.

11.11.09

Pendura

A vida, meu caro, é um penduricalho


E penso que somos nós, viventes, as suas hastes



Seríamos para enfeite

ou é por vitalidade que vivemos?

Quem sabe?

3.11.09

Medonho

Aqui, neste lugar, se fala particularmente de um medo estrangulante. O medo do futuro não renovável, do presente perecível como pêra madura. O apodrecimento do gostoso da vida...assim, impune.

Nas frutas há muita água e no mar, muita leguminosidade. Inversão: o sólido escoa e o líquido lhe prende. Em observação contumaz, se vê o tanto de loucura que há no mundo. O mundo pêra madura.

Perceba que ontem fui dormir na minha outra casa e ouvi o mar entrando no quarto pela janela. Não era vento, era mar, ele tinha ondas e tentáculos. E conforme eu ia ressonando, o mar ia se instalando todo oceano ao meu redor. Transformei-me numa ilha, cheia de diversidades tropicais. Eu não tinha mais cama, eu levitava na água azul.

E não sei explicar como, mas eu enxergava tudo de olhos fechados. No quarto daquela minha outra casa é tudo muito escuro e a noite não apresenta nem sequer sombras, nem penumbras. Onde os olhos são inúteis, eu via com absoluta clareza. Aquele mar desperto a me sequestrar.

Antes de dormir eu estava mesmo me sentindo com vontades de invocá-lo e tê-lo assim, mais de perto, mas não tive coragem. Na verdade, eu amava o mar pois sabia como era ser de uma finitude infindável e sabia como era navegar em si mesmo. Eu e o mar somos caminhos e somos ancoradouro. Profundezas e praia.

Mas naquele dia, ontem mesmo, quando fui surrupiada, os meus pés estavam tão fincados no chão que eu adormeci. E tive sonhos estranhos: de pêssegos podres, de colares de peixes, de pessoas distantes. Meu coração se afundou dentro de mim, todo esquisito, foi buscar algum consolo no meu fígado, se descolou das artérias e foi parar no meu pé.

Foi quando senti que meus pés estavam pulsando, foi quando senti que estava plantada na terra. O mar veio me visitar e me lembrar de quantos tons somos coloridos e de quantas espumas peroladas são feitos nossos risos.

Ressurge então o início da história, do mar na janela da minha outra casa e eu ilhando, oceânica.
O mar foi me resgatar do solo firme em que eu me afogava, pois que eu morro de estar seca. A sequidão me traz pavores intensos. Eu sou marítima.

Era mesmo de noite e a água do mar estava bem gelada, os pêlos do meu corpo se eriçaram de um prazer meio frio. Oscilando estre a consciência e o delírio, eu fui sendo boiada pelas escadas, até que estava no terraço daquela minha outra casa. Passei pela porta aberta pela correnteza. Fiquei na altura do teto, o mar escoava por entre as grades, mas não caia no chão da rua. O mar flutuava. Pensei que ficaria retida. Aprendi uma coisa: na retidão é que se apresenta o que há de extraordinário. O mar me engoliu todinha e eu virei liquefeita. Ele prendeu minhas narinas e me deu golinhos de ar. Bebi ar pela boca do mar.

Já na rua, a flutuação do mar me aguardava, senti um questionamento: em que praia desembocaremos? Falei com a boca cheia de bolhas.
Praia dos Anjos ou Praia Grande?

O mar fez carinho nos meus cabelos e disse:
Vamos subir o Pontal do Atalaia, vamos para o mar aberto.

Quem já foi lá naquela outra casa, sabe o que o Morro é bem de frente e que o mar fica bem atrás dele. Casa-morro-mar. A partir daí, foi uma morrência relativamente rápida e num piscar de olhos eu já estava desaguando. O mar estava muito carinhoso e solidário. Sempre me chamava de peixinho. A sensação de alívio perpétuo me inundava.

Desde ontem vivo no mar. E não consigo entender como fui nascer tão longe da minha pátria.
Ainda bem que voltei. Mar adentro.
As janelas devem estar sempre abertas.