3.11.09

Medonho

Aqui, neste lugar, se fala particularmente de um medo estrangulante. O medo do futuro não renovável, do presente perecível como pêra madura. O apodrecimento do gostoso da vida...assim, impune.

Nas frutas há muita água e no mar, muita leguminosidade. Inversão: o sólido escoa e o líquido lhe prende. Em observação contumaz, se vê o tanto de loucura que há no mundo. O mundo pêra madura.

Perceba que ontem fui dormir na minha outra casa e ouvi o mar entrando no quarto pela janela. Não era vento, era mar, ele tinha ondas e tentáculos. E conforme eu ia ressonando, o mar ia se instalando todo oceano ao meu redor. Transformei-me numa ilha, cheia de diversidades tropicais. Eu não tinha mais cama, eu levitava na água azul.

E não sei explicar como, mas eu enxergava tudo de olhos fechados. No quarto daquela minha outra casa é tudo muito escuro e a noite não apresenta nem sequer sombras, nem penumbras. Onde os olhos são inúteis, eu via com absoluta clareza. Aquele mar desperto a me sequestrar.

Antes de dormir eu estava mesmo me sentindo com vontades de invocá-lo e tê-lo assim, mais de perto, mas não tive coragem. Na verdade, eu amava o mar pois sabia como era ser de uma finitude infindável e sabia como era navegar em si mesmo. Eu e o mar somos caminhos e somos ancoradouro. Profundezas e praia.

Mas naquele dia, ontem mesmo, quando fui surrupiada, os meus pés estavam tão fincados no chão que eu adormeci. E tive sonhos estranhos: de pêssegos podres, de colares de peixes, de pessoas distantes. Meu coração se afundou dentro de mim, todo esquisito, foi buscar algum consolo no meu fígado, se descolou das artérias e foi parar no meu pé.

Foi quando senti que meus pés estavam pulsando, foi quando senti que estava plantada na terra. O mar veio me visitar e me lembrar de quantos tons somos coloridos e de quantas espumas peroladas são feitos nossos risos.

Ressurge então o início da história, do mar na janela da minha outra casa e eu ilhando, oceânica.
O mar foi me resgatar do solo firme em que eu me afogava, pois que eu morro de estar seca. A sequidão me traz pavores intensos. Eu sou marítima.

Era mesmo de noite e a água do mar estava bem gelada, os pêlos do meu corpo se eriçaram de um prazer meio frio. Oscilando estre a consciência e o delírio, eu fui sendo boiada pelas escadas, até que estava no terraço daquela minha outra casa. Passei pela porta aberta pela correnteza. Fiquei na altura do teto, o mar escoava por entre as grades, mas não caia no chão da rua. O mar flutuava. Pensei que ficaria retida. Aprendi uma coisa: na retidão é que se apresenta o que há de extraordinário. O mar me engoliu todinha e eu virei liquefeita. Ele prendeu minhas narinas e me deu golinhos de ar. Bebi ar pela boca do mar.

Já na rua, a flutuação do mar me aguardava, senti um questionamento: em que praia desembocaremos? Falei com a boca cheia de bolhas.
Praia dos Anjos ou Praia Grande?

O mar fez carinho nos meus cabelos e disse:
Vamos subir o Pontal do Atalaia, vamos para o mar aberto.

Quem já foi lá naquela outra casa, sabe o que o Morro é bem de frente e que o mar fica bem atrás dele. Casa-morro-mar. A partir daí, foi uma morrência relativamente rápida e num piscar de olhos eu já estava desaguando. O mar estava muito carinhoso e solidário. Sempre me chamava de peixinho. A sensação de alívio perpétuo me inundava.

Desde ontem vivo no mar. E não consigo entender como fui nascer tão longe da minha pátria.
Ainda bem que voltei. Mar adentro.
As janelas devem estar sempre abertas.

2 comentários:

Fernanda. disse...

fiquei sentada aqui, imaginando tudo isso.

Miguel Del Castillo disse...

putz grilo, Vivi. Vc em prosa é incrível, sempre prefiro. Que coisa bonita esse conto-poema-em-prosa. Lembrei pra variar do G. Rosa, só que ele é de rio e vc de mar:

"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio."
(do conto "A terceira margem do rio"