25.5.12

Quando nós nascemos

Eu lembro bem do dia em que anunciaram o nascimento da minha irmã. Eu não sabia muito bem das coisas. As pessoas me direcionavam e me davam espaço. Como sístole e diástole. Põe sua roupa nova, sua irmã nasceu. No hospital? No hospital. Eu pus a roupa e esperei. Os adultos se aprontarem. Quem eram os adultos? Só lembro das pernas, andando. Excitadas.

Aliás, isso me faz lembrar a primeira vez que eu consegui ver além do balcão do banco. Banco Nacional. Faliu.  Pois é. A primeira vez que pus por meus olhos no ser bancário, por mim mesma, sustentada pelas minhas próprias pernas, eu lembro. Todos as vezes anteriores meus pais me suspendiam. E suspiravam: O que você quer tanto ver?...Eu quero ver, ué?! O outro lado. Como as coisas são.
Meu pedido era tão genuíno que eles me suspendiam sempre. O funcionário sorria para mim e três segundos depois a situação era insustentável, minhas axilas já estavam ardendo. Dói ser levantada pelo suvaco. Toda minha existência era apoiada nas minhas axilas infantis, precisei ter suvacos fortes para enxergar o mundo. Por uns instantes.

Eu tinha problemas práticos a resolver dentro da minha cabeça. Muitos adultos haviam tentado me conscientizar que eu precisava ser uma menininha boa e ajudar mamãe a cuidar da irmãzinha. Por que tantos diminutivos? Elas encolheram por algum acaso ou só para demonstrar como elas eram fofinhas, muito fofinhas?
Não iria ser fácil. mas prometi a mim mesma me manter limpa, sem pirraças, dividir bonecas. Ok, tudo o que meu ofício exigisse. Eu me renderia. Mas onde ela estava? Eu precisava colocar um nome na minha irmã. A coitada tinha nascido sem nome. E eu não sabia se ela mais para Patrícia ou mais para Gabriela.
Gabriela. Quando eu vi minha mãe no hospital. Não, não. Primeiro vi freiras. Eu tinha medo de freiras e meu pai falou que se eu corresse pelos corredores, elas iriam me pegar. Mais medo de freiras.
Gabriela. Eu vi minha mãe no hospital deitada, deitada na cama, na verdade. Ela estava cansada. Pegou a Gabi pequenininhazinha. Ela era mesmo fofinha. Podia ficar com todas as bonecas.
Cuidado, Viviane, ela é muito pequena. Pega na mãozinha dela. Eu estiquei meu dedo e ela agarrou.
Ela agarrou mãe! Ela agarrou!!
Bem, esse foi nosso primeiro aperto de mão. Eu era criança, mas eu já conhecia alguns símbolos das pessoas maduras. A Gabriela era muito madura para idade dela. Ela queria uma parceria. Eu aceitei. Depois, ela me mostrou as gengivas. Jesus! Ela não tinha dente. Meu deus do céu, mãe quando nasce cabelo?
Era ria toda hora. Que bebê simpático, Elvira. Minha mãe é Elvira. Era mesmo. Eu acho que nunca deixei a Gabi cair. Quando pegava ela no colo, eu sentia meu coração endoidecido. Disparado dentro do peito. Eu vi que Deus tinha me criado aos poucos e aquele dali era um pedacinho que faltava. Eu tenho outro também. Pedacinho irmão. Pedacinho de céu-menino. Vaguinho, meu amor. Quando eu pegava Gabi no colo eu tinha quatro anos. Morria de medo de esmaga-la. Mas era melhor do que ela escorregar dos meus braços. Aí eu apertava. Devagar, Naninha. Minha mãe me chama Naninha, quando ela me vê pequena.
Devagar, não deixa cair. E ela mostrava aquele sorriso de velho pobre, sem dente, nem dentadura.

Eu acho que Gabriela se tornou dentista porque ela nasceu sem dente e carecia disso para um sorriso completo. Ou porque ela sabe como é ruim a gente querer sorrir e não poder. Aí ela virou engenheira de sorriso. Para rir é um pulo. É só olhar para ela que sua alma fica morna e naquele aconchego, você ri. E quando vê que ela vai existir para sempre -minha irmã é eterna - quando você vê que ela é infinita, você gargalha.

Mas não foi sempre bonita. Avisaram que minha família viria visita-la. Bisavó, tio tio tio tio tio tias. Amigos da firma. Amigos vizinhos. E ela continuava sem cabelo. Já fazia uma semana e sem a Gabriela falar nada. A voz dela não saía direito. Iria ser um fiasco.
Me adiantei. Pulei no berço e arrumei, deixei um pitel. Fiquei satisfeita.
Minha bisavó foi andando sozinha, vagarosa até o berço: Santa Maria, a menina está verde e toda machucada! Minha avó não enxergava bem. Todos correram. Eu também. Mãe: que isso?! Minha mãe também não enxergava bem. Gente, resumi: é maquilagem, ela estava meio feia antes.
Objetivamente, eu achava que estava melhor. Tinha ganhado meu kit de plástico. Usei o perfuminho quase todo na Gabi. A sombra verde escapou um pouco nas pálpebras e se estendeu até as bochechas e o batom - ela mexia demais a boca e tinha muita baba - o batom também ficou a mais, também até as bochechas. Tudo acaba nas bochechas da criança. Deve ser por isso que beliscam-nas tanto.
Minha mãe ficou brava, a Gabi só tinha 5 dias de nascida. Eu poderia ter matado, etc, etc. Mas eu sou louca de matar minha irmã? Cada ideia.

Bem, foi assim. Depois ela cresceu, ficou pequena, loira e pequena. Eu, grande, morena e grande. Hoje em dia pensam que somos gêmeas. De alma deve ser. Cada ideia.

Ela está ali do lado. Tirando um cochilo. Dormindo encolhida. Me emociona ve-la grande, com voz, cabelo, dente. Ela superou a fase ruim. A sensação que eu tenho é que, em grande parte, eu vivo e morro por ela. Essa é nossa parceria, foi isso que eu entendi dos olhos dela, apertando meu dedo, há muitos anos atrás.



Nenhum comentário: