11.7.13

2. Remadas

Acordei sem entender muito bem as coisas. Apito e capa de chuva jogados a esmo, como se uma explosão de objetos inesperados tivesse ocorrido. Minha cabeça latejava e o mar balançava demais. Desanimada ,rastejei até os dois remos, decidi que um era suficiente e me pus a remar. Depois de cinco minutos, tudo o que tinha conseguido era fazer uma circunferência, um percurso nada eficaz para quem tenta escapar de um oceano. Passei a oscilar, uma remada para esquerda, outra para direita. Finalmente. Remei e remei, por horas minutos, não sei explicar. Meu coração doía tanto que comecei a chorar. Minhas lágrimas eram salgadas e, naquele instante, percebi que o mar habitava em mim. 

E imaginei quantos crustáceos viviam em mim. As águas vivas bocejando, com seus tentáculos voando nas marés. Vermelhas. Azuis. Mortais. Ardentes caravelas. E imaginei os peixes. E as baleias que viviam aqui dentro. Dentro do meu coraçãozinho. Vivia tanta coisa bonita, por isso que eu chorava oceano, tadinha de mim que não tinha onde desaguar, chorava, remava. E dei por mim perdida, sem direção, remando só para não morrer num lugar só. Eu desfilava meu desespero entre as correntes. Tartarugas ficaram me olhando com pena. E eu não tinha um norte. Remei, como se meu esforço compensasse as dores. Remei, como se o movimento apagasse o passado. Remei como se a distância me afastasse de mim mesma. Mas, no fim das contas, lá estava eu, no canto de mim, despropositada e orgulhosa.

Exausta, joguei o remo fora. Lancei no mar meu instrumento de tortura. Arrependida, me lancei do barco, nadei alguns metros e trouxe de volta o remo. Subir no barco foi quase impossível. Não tinha forças para me  suspender e tinha medo que o barco virasse. Sentindo-me impotente, comecei a morder a água como uma louca. Por fim, como uma senhora de oitenta anos, levei meu corpo, minha alma e meus dentes vorazes para dentro do barco. O sol já estava ameno. Achei minha bolsa. Encontrei um pente, protetor labial, pulseira e escova de dente. Usei tudo ao mesmo tempo. Eu estava tão triste.

Lembrei do Pepe. Ele tinha levado um tiro no coração e nunca mais tinha se recuperado. Tentaram matar a mãe dele, mas atingiu ele também e arrebentou o coração de todo mundo. Ficou faltando um pedaço dentro do peito dele, por isso ele nunca tirava a camisa, tinha medo que vissem o abismo que tinha lá. Mas ninguém via e, vez por outra, recebia uns golpes na sua antiga ferida. Algumas pessoas são verdadeiras chagas na nossa vida. Vira e mexe voltam abrir e florescem a dor. Depois vão embora, cínicas e assustadas com as consequências de seus atos. Pepe vivia de coração roto por causa de Estela. Aqueles olhos esbugalhados fascinavam o pobre homem. E ele vivia como uma pipa, no céu, mas bem preso. Que carretel é esse que nos prende? Sempre me perguntei. O medo de não ter quem nos segure, talvez. Pepe resolveu que não amava Estela, resolveu que era livre e foi viajar. Morou fora por uns tempos, conheceu Isabel e estava forte e vigoroso. Mas Isabel degringolou com a distância. Estela batia na porta todos os dias, na esperança de entrar. E ele disse não. Disse não nunca mais. Disse que não era bobo. Disse que aquilo não se fazia. Disse que podia entrar só um pouquinho. Disse que o sofá era dela. Disse que o anel cabia bem no seu dedo. Disse que a amava e estava satisfeito da vida. Mas Isabel degringolou com sua canalhice e traiu o pobre homem. Manchou o rosto dele de lama e esfaqueou suas forças. Ele ficou sem ter para onde ir, ela era o seu destino. Ficou sem ter talheres. Só carregava um punhado de razão que não tinha coragem de compartilhar com ninguém. E quando lembro dessa estória lembro também que não sei que fim levou Pepe. 

Sempre invento um final feliz para ele. Ele já foi açougueiro rico em Paris, já teve filhos com boquinhas vermelhas e olhinhos brilhantes, já teve uma esposa suave e miúda, já encontrou uma ilha nova na África. Eu fico tentando explicar o porquê, dele ser bonito e merecer felicidade. Mas eu não sei como. É como aquela fruta deliciosa que desmancha na nossa boca e some. Ou como um beijo enquanto você dorme. É algo que você sente e escapa, é como se flores brotassem em espirais e pousassem em nossos ombros e a noite caísse e tudo descansasse.

Essas lembranças trouxeram o pôr-do-sol e as estrelas resolveram se espreguiçar diante de mim. Eu não sabia ler sol, e estrelas, sinais ou coisa que o valha. Como achar a saída diante de uma imensidão? Fiquei tentando inventar algum sentido e pedi para que as três Marias me orientassem. Nem Deus, nem as virgens. Onde eu vim parar?


[continua...]

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