29.7.13

Parte 6. Pulular

Fazia muito frio e eu só tinha uma lona. Mais uma neblina que me deixava embaçada. Meus ossos ficavam cada vez mais rijos, como se me perfurassem toda por dentro. A noite parecia infinita. Certa vez, li num livro de física algo sobre elétrons confinados e, me explicaram, havia um poço de potencial infinito, uma espécie de armadilha para que pudessem estuda-lo. Se sabem onde ele está, não sabem sua velocidade; se descobrem a velocidade, perdem onde ele está. Um salto quântico. Não sabemos de nada.

Eu me sentia num poço potencial infinito onde tudo paira e tudo passa. Memórias, realidades, expectativas. Tudo boiando dentro dos meus olhos, produzindo visões etéreas. Aquele barco me fazia boiar. E eu oscilava nas ondas, moribunda.

A lembrança de Marcos me fez perder esperanças, a vida ficou pingando no mar. Minha boca ficou seca. Não é o fim o que machuca mais, é o começo. As risadas, os véus que enfeitam a cama, o casaco vermelho comprado no Chile, o souvenir que ele me deu. Não sabia se era o frio que machucava meus pensamentos ou se foram eles que congelaram o mundo. A verdade é que o amor tem seus representantes e uma pessoa acaba por simboliza-lo. Ora, ora, e quando o amor diz que não te ama mais, algo quebra, um sino ecoa e uma parte de nós despenca.

Às vezes, amamos muito quem não nos fez feliz. Amamos o amor e não a pessoa. Às vezes, encontramos a pessoa, mas o amor é impronunciável, proibido.

Como por um milagre o dia tinha resolvido se escancarar num céu azul. E um broto de qualquer coisa germinava em mim. Resolvi sobreviver. Mas não importava o quanto eu quisesse, não sabia o que fazer para sair daquela situação. Continuava no barco, com pouca comida e sem direção. Arrumei minhas coisas mais uma vez. Cataloguei na minha mente o que eu tinha e o que me faltava. Passei o dia revirando a mim mesma, investigando minhas mãos, percebendo cada dobra, ruga, machucado. Escureceu cedo e se fez uma noite extremamente escura. A lua estava apenas um fiapo, pendurada no teto do mundo.

O nome dele era Felipe e tinha uma tatuagem no antebraço, cabelo enrolado e blusa da Itália. 

Eu olhava para um rapaz de blusa listrada, muito alto que estava longe. Olhava por cima das cabeças. A música em todos os ouvidos. Não ouvia nada, estática, decidindo o que fazer. Eu iria lá. Sim. Fechei os olhos. Pegaram minha mão. Mas não pude dar atenção. Ele estava se afastando cada vez mais. Uma voz no meu ouvido: Meu nome é Felipe. Não respondi. Minha mão albergada nas mãos de um intruso. Qual é seu nome? Fiz que não sabia. Oi, sou Felipe, qual é seu nome? Olhei. Ele sorriu. Esqueci de tudo. O que você faz? Sou professor. De quê? História. Para crianças? Ensino fundamental. Ele estava nervoso, suas mãos começaram a suar. Faço mestrado também. Estava cética. Qual sua linha de pesquisa? E ele falou por uns 15 minutos, sem que eu pudesse ouvir mais do que três palavras sequenciais. Relações de poder. Marx. Instituições. Com a mão direita segurava minha mão esquerda e com a mão esquerda segurava meu braço direito. Colou o rosto no meu e falava, tinha que gritar para superar todo o barulho. Pegava fôlego: eu sentia sua barriga, seus pulmões sorvendo ar. E, de repente, saiu daquele transe, se deu conta do quanto tinha se aproximado, apertou minha mão, largou meu braço. E pediu desculpas. Falei demais. Apertei a mão dele e disse: Não. Por que você veio até mim?, eu perguntei. Ele ficou surpreso, como se fosse impossível que eu não soubesse a resposta. Por que você veio até mim? Ele engoliu saliva, abriu e fechou a boca. Fez carinho nos meus dedos. Você linda. Sorri, encolhida, envergonhada. E ele me beijou. Disse que poderia ficar o dia inteiro me beijando. Disse que nós iríamos fazer um piquenique, que ele conhecia um lugar bom. Já sabia que frutas levar. E iria colocar uma canga e iria ficar mexendo no meu cabelo. Assim, beijando seu cílio assim. O dia inteiro, você acha uma boa ideia? Achava. Eu gostava da tatuagem. Um círculo com desenhos doidos lá dentro. Olhos castanhos. Cabelo grande. Nariz pequeno, tão sutil. Seu nariz é lindo. Você é bonito. Ele fez que não. Era sim. Beijei o nariz. Muito bonito, beijei a orelha. E o piquenique, você vai? Vou.

Um estrondo no casco do barco. Parecia que estavam socando todas as laterais. Não eram pedras. Algo caiu em cima de mim. Comecei a gritar. Joguei para longe. Abri bem meus olhos. E consegui ver mil pontos prateados que se agitavam no mar, era um cardume, ensandecido, pulando para fora da água. Pipoca de peixe. Fui ao encontro do que havia lançado para longe. Ainda agonizava. Eu tinha peixe, eu tinha cerveja. Festa.

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