18.7.09

Dorinha (vem)

A vida, Dorinha

Senti necessário um narrador em terceira pessoa. Alguém para acompanhá-la nessa saga, nessa tristezinha que você está. E como você, Dorinha, começou falando sobre conceitos, preceitos e conclusões, faço o mesmo para não lhe surrupiar o estilo. Venha comigo Dorinha, que hei de dar-lhe um final feliz.

Dorinha pensava muito e sempre que pensava inventava umas firulas para sua existência. Dorinha não parava de entender o que era vida e, nessa etapa, percebeu o quão importante foi refletir sobre os tempos verbais (presente, passado e futuro). Digo tempos verbais, porque, ainda que não percebesse, Dorinha era extremamente gramatical. Pensava em letras e se apegava a um pedaço de papel mais do que a ouro e a diamantes. Pensando, pensava Dorinha que letras são jóias que acabam morando dentro de nós.

Por isso, ao pensar nos tempos -ditos verbais- concluiu quase que espontaneamente o que vem a ser a vida. A vida, ela dizia em sua meditação, é o que acontece entre o futuro e o passado. A vida não é o agora, porque agora é instantâneo. A vida é uma linha contínua de agoras, um período, um pedaço de tempo fluido que transita entre o mistério do que será e o conhecimento do que já foi. Isso é a vida.

Dorinha sentiu-se feliz. Pois, pela primeira vez, sentiu-se livre do tempo. Agarrou-se a vida sem nomenclaturas. Um alegria tão calma, ficou mansa e adormeceu. A Dorinha, nossa mosquinha.

Isadora sonhou depois de muitas e muitas noites sem dormir. E isso lhe deu um prazer tão cru, que interrompia-se no próprio sonho na afobação do que acontecia. Era coisa de estória simples, daquelas que continuamos em um filme eterno e esquisito. Fato é que sonhava e era o bastante, pelo menos por hora.

Foi ligeiramente desagradável quando surgiu um pretendente antigo, ali, no meio da cena. O problema era que o tal insistia em participar, embora a menina o afastasse. Ele vinha cheio de olhos e de face. Dorinha se lembrou do ritmo dele, do tipo de movimento que ele tinha. Seu nariz era particularmente bonito. Assim, acabou-se a festa: a realidade chegou rendendo a todos e tiveram que entregar a fantasia. Acordou-se querendo dormir.

A garota - chamo assim porque já sou narrador mais antigo-, a garota percebeu que nem em mundos inventados conseguia a paz de um amor tranquilo. Ficou enraivecida, como era de se esperar. Fazia um frio ensolarado nesse dia, pelo que pegou um agasalho modesto e saiu-se para passear. Escolheu um parque daqueles com árvores quietas e abundantes. Sentou no banco e inutilmente teve esperança. Depois de alguns minutos já estava como um ramo que quebra e fica pendurado ao caule, como se vivo estivesse, morto que está. Vivia assim, Isadora.

Daqui para frente chamarei de Isadora, por questão de respeito puro. Aquela linda criatura feita de gente. Isadora estava cheia de areia por todos os lados, o deserto lhe cobriu e ela serviu de monte, de trecho igual. Coitada, tão alheia a ela mesma, tão só de si.

A Isadora queria esparramar, mas virou-se gota de novo. O final feliz que lhe proporciono é o que os velhos e sábios dariam. Achar nesse agora esticado que é a vida algo que não a compensação da felicidade. Como narrador onipotente, instauro em Isadora um esquecimento total de seus sonhos impronunciáveis.

Isadora notou-se diferente. Havia uma leveza tão particular tão boa. Alívio. E se deu conta que seus sonhos haviam sumido. Sem desespero. Alívio. Para mostrar que alguns ideais devem ser abandonados, Isadora vestiu-se de flor e desabrochou. Silente, intrinsecamente.

O narrador e a Isadora concluíram que soluções das mais diversas são possíveis. Conceberam que nem sempre o que dói é o pior. Que há sonhos podres e é preciso limpar-se.