22.1.10

Perdendo sentidos

Algo estranho está acontecendo: a perda dos olhos. Um belo dia me acordei com uma úlcera de córneas e cataratas múltiplas. Desde então, passei a desenxergar.

Bati três vezes a cabeça na porta aberta, de alguma maneira, o fato de não visualizar o caminho obstava minha passagem. Veja que mesmo de noite, na hora que não precisaria ver muita coisa, o sono me escapulia, a sensação de cegueira me tomava e eu me punha a andarilhar pela casa. E mesmo sabendo que havia muita escuridão, sobrepujava a vontade de captar clarões. Ficava como uma caçadora, abrindo e fechando os olhos, repetindo palavras mágicas; porém, só me sobrava uma nesga de contornos.

Sempre fui de ver muita coisa, quando pequena tinha um amigo invisível e mesmo a água, que dizem os cientistas que é transparente, eu vejo. Vejo águas em tudo que é canto, inclusive há um monte delas, aglomeradas, que de tanta excitação formam ondas. E eu vejo isso tudo. Minha visão sempre foi perfeita. E de tão boa, eu conseguia até ver por dentro dos meus olhos. Eu via micróbios, venenos, ácido sulfúrico.

De repente, fico só enxergando a pausa. Porque o escuro é a pausa da luz. Se há luz o movimento se instala, os cílios vibram, os nervos sorvem os objetos. Estou de jejum.

Minha irmã tentou conversar comigo, disse: “Sossegue, Luna. Todo mundo tem umas caolhices, umas desenxergâncias.” Ela é boa comigo e eu resolvi acatar. Mantive meus olhos fechados, bem cerrados... o esquisito foi que não saia palavra da minha boca. As comportas se fecharam. Minha família ficou alarmada e chamaram a vizinha para me benzer. Aquela confusão: “Ai, meu Jesus, a garota ficou muda!” Minha mãe ficou murcha e entre um suspiro e outro, lamentava: “Gostava tanto de uma conversinha fiada com essa minha filha. Ah, mas que tristezainha!”

O outro sentido que eu perdi foi o da firmeza de pernas. Toda vez que eu começava a andar, minhas pernas ficavam tremendas. Tudo que era tremilique de alma se escoava para minha perna. Lastimável. Eu me assustava com tudo e só sentava depois de dar duas voltas no meu próprio eixo. Rodava: uma: duas vezes e sentava. Aí, sim, com bastante segurança de que naquele lugar não morava um abismo, eu me reclinava.

Nessa época, eu fiquei indo para lugares improváveis. Fui andando, andando e fui parar dentro do cesto de roupa suja, já no outro dia dei um tibum na vasilha de água da minha cachorra. Meu tamanho também começou a variar, teve uma vez que me medi e eu estava com 1,93 m de altura! Minhas calças ficaram curtas e minhas saias, indecentes. Tive até de ficar em casa, por falta de roupa mesmo.

Nem meu tato, nem meu paladar ficaram mais aguçados. Isso é tudo crendice. O que aconteceu de fato, e isso é garantido, foi uma pequena alteração na minha audição, fiquei surda de um ouvido.

3 comentários:

Mah disse...

Viviane Bastos. Você escreve maravilhosamente bem, aliás, eu queria uma palavra melhor que isso,
mas acho que não existe.

posso pegar frases e citar, entre aspas, especificando que foi vc que disse, e não eu ?

te amo e sou sua fã.
Invariavelmente.

renata penzani disse...

gostei tanto daqui...

Karol disse...

"Toda composição é uma auto-biografia. Mesmo as que não são"
Não sei pq mas acho q isso se encaixa tão bem aqui, rs.
Te adoro!