14.4.10

Dentística

- Vó, o que houve na sua boca? Você está falando estranho...
- A tentatura estava me matchucanto, atchei melhor tirar.

Elinda falava assoprando a própria boca que agora parecia folgada, envergonhada pela falta dental, punha a mão escondendo. E conversava muito, no sofá da casa, fazendo concha com as mãos e protegendo a boca dos olhares. Olhares perversos daqueles que possuem sorriso. Aninha sonolenta e pacífica, dialogava sobre canjica, colírio, chuva e perigos dos quais tinha se livrado. Já era tarde da noite e o cansaço se espraiava sobre elas, como uma coberta grossa e macia.

Dormiram.

Amanhecia e Aninha relutava, espremendo os minutos, tentando alongá-los e permanecer dormindo, intactada. Inútil. O mundo já havia acordado e ouvia as vozes de seus familiares tagarelando assuntos matinais. “Pão? Quero. Café? Com leite. Banho! Já vou.” A porta do quarto se abriu:

- Ana, seis horas – disse sua mãe.
- Eu sei.

Saiu com o cabelo pro alto e os pés enterrados no chão, precisava ter dormido duas vezes mais. Com a letargia daqueles que se sentem estafados, observou um movimento significativo na casa. Seu pai abria e fechava bolsas; andava desconfiado, vasculhando tudo. Seu comportamento era curioso: agachava pela casa com a toalha na mão e com o cinto colocado só pela metade.

- Pai?
- Ana, sua avó perdeu a dentadura.
- Nossa, ontem ela me disse que tinha tirado, de noite.
- A gente tem que sair cedo hoje, ela tem consulta com o oftomologista. Ai meu Deus do céu!

Dez minutos se passaram. Nesse ponto a busca estava frenética, Elinda procurava em cima dos armários, ali, bem do lado do teto. Walter se esgueirava pelos cantos do mundo, lugares obscuros.

- Eu guardei! - berrou Elinda.
- Achou? - respondeu Walter, aliviado.
- Não, eu guardei ontem...numa bolsa...

Elinda apontou para meia dúzia de bolsas escancaradas e remexidas. Acontece que Elinda estava com catarata e não estava discernido muito o visual das coisas. Veja só que seu ponto principal de busca foi justamente a bolsa de malhar do seu neto Teorodo. Alvoroçados, os envolvidos resolveram bisbilhotar os pertences uns dos outros. A confusão maior se deu quando se depararam com a malinha de Gracinha. Gracinha fazia odontologia e sua mala rosa estava repleta de dentes, não tardou para que Elinda proferisse:

- Foi Gracinha! Ela pegou minha dentadura para levar para faculdade.

No começo todos riram, mas, pouco a pouco a dúvida foi se instalando nos corações e começaram a imaginar...imaginar.

- Gracinha! Gracinha, acorde!
- O que foi? - balbuciava como quem não tivesse domínio sobre suas próprias bochechas.
- Você pegou a dentadura da minha avó?
- Oi? - Gracinha levantou o tronco e abriu os olhos até a metade.
- Por engano, não sei...vc viu a dentadura?

Aquilo foi demais para a jovem, seu intelecto estava dominado pelo sono, repentinamente ela sucumbiu: virou para o lado e começou a roncar.

Não houve quem não cismasse, um cheiro de dissimulação e covardia emanava. Elinda apertava dos olhos, de boca encolhida. De repente falou, com um ar de índia feiticeira:

- Foi Gracinha.

Walter fez cara de deboche, mas, numa troca de olhares com Aninha, demonstrou preocupação. Chamou a filha mais velha para deliberarem.

-Você acha que foi Gracinha? - Walter disse em voz grave.
- Pai, ela já tem tantas dentaduras. Inclusive uma enorme, com dentes gigantes. Ganhou da colgate, lembra?
- Não tem mesmo necessidade de uma coisa dessas, ela mesma tem todos os dentes, até sisos inclusos.
- A ambição não tem limites, paizinho.

Elinda andava pela casa com ares de adivinha poderosa. Neste mesmo instante, Walter começou a chamar:

- Chiquita! Chiquita!
- Quem é essa, pai? - Teodoro estava visivelmente alarmado.
- É a dentatura da sua avó. Acho que ela fugiu.

Elinda despertou repentinamente:

- Fugiu. Será?
- Deve estar no ponto de ônibus agora, querendo ir para Barra de São João. - disse Walter.
- Tentando voltar para casa, coitada.
- Mas a Chiquita não sabe que é perigoso sair sozinha? Ainda mais ela, dentadura de mulher. - ele acrescentou.
- E já é uma senhora. Deve ter uns 40 anos.

Aninha não conseguia para de pensar como aqueles dentes postiços eram especiais. O sorriso da sua avó se fora. Só haveria espaço para seriedade. Não. Ela jurou que desvendaria este mistério. Acharia a dentatura Chiquita, não deixaria as gengivas de Elinda vazias.

continua...

Um comentário:

Anônimo disse...

hahahah! aproveito meus dentes completos para rir de boca cheia! Aguardo sorri(dente) o próximo episódio.

beijos