4.9.15

Da realidade dos fatos

            Certa vez, uma amigo do meu irmão apareceu aqui em casa, tarde da noite para ir no Via Show, a namorada dele, que morava na Serra ou na Região dos Lagos ou longe tipo São Gonçalo, estava na casa dele. Tinha vindo passar o fim de semana com seu amado. Diante da alegação de que iria jogar video game o jovem, ganhou o mundo, com perfume e gel emprestados. O que me inquietava era que ele havia me dito que desta vez estava realmente apaixonado (fato inédito). Resolvi inquiri-lo: “. Mas, garoto, você não disse que gostava dessa menina?!”. Ao que ele pensou, pensou e me respondeu: “E eu gosto! Só que gosto mais de mim!”. Gargalhei.

            Achei esse argumento de uma honestidade ímpar, tanto para ele mesmo quanto para o interlocutor, no caso eu. Não tanto para a donzela, mas, vá lá, nem toda estória tem final feliz para todos. Aliás, quase nunca tem. A questão é que normalmente escondemos nossos interesses reais e colocamos a culpa no outro pelas nossas escolhas. Nesse caso, a fulana era ótima, gostava sim, mas não queria abrir mão das demandas do ego dele. De qualquer maneira, a resposta foi genial, uma baita auto-sacação.   

            Não tenho a mínima pretensão de explanar uma conduta moral a ser seguida, não sendo comigo, cada qual é livre pra trair quem bem entender. O ponto neuvral seria muito mais a capacidade de auto-compreensão dos indivíduos moderninhos - que está bem afasada. Para além de sermos miméticos, temos que 1) imitar, 2) explanar e 3) colher as curtições. Isso dá um trabalho enorme e arquitetar uma felicidade (nem que seja falsa) nunca foi tão difícil, afinal, temos fiscais. Fiscais do peso, da carreira, do amor, fiscais de mêmes. E quem me dera fosse só o Tio Sam vigiando, pelo menos era da família. Um tera de pessoas inspecionando umas às outras, sem que tenham, ao menos, uma relação próxima. Eu também fofoco virtualmente, não sou santa, nem boba - minha valia é que não sou tão curiosa, então levo bem minha ignorância.

            Lembrei também de uma explicadora que eu tive, que era alto nível. Ela era esperta, versátil e fez uma mini-escolinha no quintal de casa. Alunos de várias séries. Meu sonho era passar no colégio militar, mas não tinha dinheiro para pagar o Curso Martins, então, fiquei aqui no bairro mesmo, por sessenta reais. Passei para FAETEC e fiz diversas coisas em visual basic. Tenho o meu glamour, dá licença.

            Ela trabalhava sem parar. Na minha formatura de oitava série ela foi e eu fiquei estourando de orgulho. Ganhei uma medalha de melhores notas, achei tudo o máximo. Sobretudo vê-la de cabelo penteado, com roupa de sair. Isso tomou uma dimensão tão grande dentro de mim que não lembro se meus pais foram. Ela era minha mestre, que sabia todas as matérias e me explicava tudo o que não conseguia entender. E há até poucos meses eu tinha todo o material que ela havia confeccionado para mim naquele ano. Guardei alguns favoritos e o resto deixei ir.

 Ao contrário do rapaz do começo do texto, a Tamar colocava todo mundo a sua frente. Os pais, os sobrinhos, irmãos. Ela cuidava de tudo, até da limpeza do coco dos cachorros. Morreu uns dois anos depois da minha oitava série, um negócio assim. Teve um infarto e pronto. Fechem os livros, esvaziem as cadeiras. A filhinha dela era mais nova, devia ter uns 10 anos. Não deve ter passado no colégio militar também, ficou órfã (o pai era distante ou não existia).

            Toda vez que passo em alguma prova, uma coisa bem difícil, eu lembro dela, nunca ninguém confiou tanto na minha inteligência. Eu chegava com um problema de matemática sem solução, muito angustiada, ela olhava e me dava uma bronca: “Não quero ouvir eu não sei. Você não fez porque você não quer. Quando quer, resolve.” E eu resolvia. Ela me ensinou a ser persistente, como não conseguia confiar em mim mesma, confiava na palavra dela.

Nos últimos dias, fiquei imaginando batendo na porta dela e contando que passei no vestibular, que passei na prova pra tirar habilitação (que sufoco!), passei na prova do mestrado, na prova do emprego que eu queria. Queria contar que já corri 10km, que já subi montanha. Iria ser bacana ouvir aquela risada, como se eu estivesse fazendo uma estripulia: “você é fogo na roupa!”.

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