É pesado imaginar como nosso corpo pode se
tornar um depósito de prazeres, mas, necessariamente, um paraíso a ser perdido.
Uma relação superficial e deformada que se assemelha a uma mordida no sorvete: arriscamos
experimentar uma hipersensibilidade pelo gozo de abocanhar um pedaço maior.
Nunca mordi sorvete. Não gosto. Mas sempre deliciei em ser o gelato.
Um dia após outro, construo conclusões provisórias,
que sejam absolutas. Como que para redimensionar o caos em porções absorvíveis.
Admito que essa segurança que me forneço é um conforto paras minhas costas
cansadas. Sentar de mochila no banco, rasgar uma bolinha de algodão. Não é
muito, e talvez não o suficiente, mas já é alguma coisa.
Tenho perdido o apetite pelas pessoas. O
deslumbramento ora dura pouco, ora demora demais a acontecer. Como comer plástico
com pitadinhas de sal. Sem digestão possível, vai embora sem deixar nada,
intacto e intocável. Meu apetite gosta de se alimentar, de triturar e sorver.
Só vejo cabelos e roupas. Poucos olhos e quase nada de alma. Fico sem fome.
Esqueci minha escova de dentes reserva numa
casa de uma noite, meu chinelo e um rascunho. Imagino se não foi um abandono. A
escova era velha, o chinelo inútil no inverno e o rascunho bobo e feio. Deixei
os outros descartarem meu lixo. Não ouso mudar de direção nem mesmo para me
desembaraçar. Todo o resto tomba de mim e fica estirado no caminho passado,
como um obstáculo. Não me siga, eu prossigo.
Quando falo de amores moribundos, falo daquilo
que eu mesma já vivi. Mas que se resignificou. Estou incapaz de amar. Sinto o
cheiro desse entulhamento, que fica agonizando, muito embora sejam pedras
mortas. Observo, sentada na minha própria barriga, minha dificuldade de respirar.
Não faz mal, esse personagem tem mesmo que expirar. Era muito véu cintilante
para pouco vento. Os tempos são outros.
A consciência exata de que o amor morreu me
traz um alívio absurdo. Um terreno limpo e pisoteado. Mas limpo. Descompactar é
só uma questão de remexer para lá e para cá. Soltar a terra. Ressaltar um novo
chão. Seria um terreno-caminho ou um terreno-lar? Ponto-fixo ou ponto de partida?
Olhando por alto, não consigo discernir.
Porém, ainda que tenha me livrado dos chinelos,
ando carregando uma meia dúzia de amores defuntos e não sei muito bem qual o
procedimento. Nem da simpatia, nem do mau agouro. Enfiei-os todos num saco de
batatas e arrastei até aqui – e agora. É leve, mas de um volume enorme: às
vezes, tapa-me a visão. Não cabe na cabeça. Não entra no bolso, nem entre um
braço e outro. Levando em consideração que todos foram muito caros, quero uma
finitude que agregue valor à experiência.
É verdade que esse pacote mais parece um elefante
de porcelana gigante daquelas que só é lícito às tias-avós possuírem. Impressionantes,
meio cafonas e lascadas. Preciso de um ritual de passagem. A questão é: o que
fazer com amores mortos? Desfalece-los? Jamais!
Rascunhos, escovas e chinelos. Bem, fico assim
meio sem graça, mas vou deixar meu mausoléu aqui. Não, Repara a falta de jeito.
Repara bem: vou abstrair esses cadáveres. Abandono de forma literal, é o abc da
vida.
De a-z: Fim.
Fim. Fim.
(só para garantir)