27.4.16

Antes de dormir

Tenho minhas unhas rosas, mal pintadas, mal limpas. Tenho um coração encardido de tantos amores malpassados. Tenho um peito aberto de vazio, cheio de enxertos e carcaças. Vivi entubada em mim mesma, encolhida nos meus pés, longeando da cabeça. Não quero pensar. Não quero sentir. Quero caminhar. Andar não desdiz ninguém. Ir não destrona: afasta e lambe-se o silêncio dos passos.

Vivo a construir pequenos relatórios mentirosos, do que fiz e do que sigo sendo. Eu estou, sem gerúndios, num presente bem marcado. Estou pétalas voando para o chão. Estou neve pouca que se dissipa pelo ar. O que congela, mas não tomba. O que se esfrega no meio e se alonga. Sem pressa, sem alvo. Sem lugar.

Vivo como ser etéreo inventado em outra linguagem, engolido por nada. Transito impune pelas ruas deles. Como a comida, vejo seus olhos, sorvo seus cabelos. Me esgueiro entre as frestas e aspiro como amam, o que sentem, o que soam. Faço igual, faço diferente. Engulo tudo, mastigo e cuspo.

Como morder borracha, como chupar capim, como lamber o mel, como beijar a água. Como me derreter em momentâneas sensações de solidão desamparada, para me derramar na delícia de estar só.

Sou calma e lago. Um sábio de bochechas caídas. Sou bruxa fazendo poções para seus gatos. Sou o contentamento do instável. Sou a beleza da brisa no mar. Sou o último pensamento antes de dormir. Sou à Deus.

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