9.12.08

A menina e o poeta

- Ô seu poeta?!
- Pois não, minha cara.
- Onde está sua poesia?
- Guardada no coração.
- Ô seu poeta!
- Diga lá.
- Não sabe que poesia se come, se bebe, se canta, se dá?
- Que se canta eu sei sim. Mas que se come, nunca comi. Quando se bebe, pode engasgar e quem muito dá, fica sem.
- Então tá...
- Por que está aborrecida, menina?
- Porque queria sua poesia.
- Mas não vê que não posso lhe dar o que me envivece?
- Não vejo não, seu poeta. Envivece? Que vem a ser isso?
- Pobre menina. Envivecer é dar vida e ficar dando vida.
- Não pode ser avivar?
- Pode não.
- E porque não?
- Porque sou poeta.
- Ah...poeta só sente com a palavra certa.

O poeta riu dessa meninice.

- Não, a gente sente cada letra e cada palavra é uma sensação.
- Deve ser bom ser poeta - disse a menina pensativa.
- Não é.
- Mas eu teimo que é.
- Pois teime, então - disse o homem impassível.

A menina mergulhou nela mesma.

- Menina.
Silêncio.
- Menina!
Lonjura.
- Por Deus menina, refique comigo.
- Refique?! Palavra gozada. O que queria comigo?
- Ouvi-la - disse o poeta cabisbaixo.
- Me ouvir para quê, se em você se encerram as melhores palavras?
- Não sei, talvez quisesse ouvir suas bobagens - disse em tom de pilhéria.
A menina se ofendeu e se trancou em si mesma.
Foi embora.

O poeta virou açougueiro. A menina foi comprar carne.
- O que faz aqui? - interpelou a menina.
- Derramo sangue e despedaço corpos.
- Gosta do que faz?
- É a mesma coisa que escrever, troquei a pena pela faca.
- São iguais- afirmou contundente.
- O quê?
- Faca e pena.
- Você é "poeta", menina?
- Não, sou quem lê. Sou quem entende, sou quem sente os sentidos.
- Menina, amo suas tolices.
- Poeta, odeio sua sabedoria.
- Por que diz isso, se lhe quero tão bem?
- É que na sua infinita beleza nunca me fez bela. E com todas as suas rimas nunca me fez poema.

Deixando a carne cair, a menina se foi chorando.

A menina virou bailarina e o poeta foi ao espetáculo.
- Menina, dançou tão bem!
- Poeta, porque me persegue?
Afônico ficou o poeta. A menina comeu o silêncio e retomou a conversa.
- Poeta, se me ama, então se pronuncie.
- Eu te amo.
- Poeta, o que fala tão baixo?
- Coisas de amor, pequenina.
- Para quem?
- Para você, minha menina.
- Então por que não ouço?
- Porque me calo.

Lamentando muito a menina despedaçou sua roupa e lançou fora no rio, juntamente com seu coração.
Pensava coisas tão tristes.

"Amar é bobógeno. Alucina e machuca. Mas faz dançar a alma. Eu já fui bailarina, já fui menina. Agora sou grande e estática."
A menina tentou se tornar árvore, porém, era inquieta demais e nunca criava raízes. Não sabemos o que o poeta fazia por esses tempos; ninguém sabe o que fazem os poetas, o que eles sentem onde eles amam e o que os encantará.

- Poeta!
- Menina, estou bravo! Você machuca, você erra, você rasga, aniquila, perfura, inquieta. Menina, estou bravo.
Vou para longe, me esqueça. Menina, você estraga tudo. Você azeda o amor. Você é culpada. Você é cruel. Você dilacera. Você me devora. Menina, vá para longe. Eu me afasto, eu me vou.
- Que triste essa história.
- Por quê?
- Porque é tão sem esperança.
- Você acha? - perguntou o homem.
- Penso que sim. É uma história tristíssima, na verdade.
- Qual história?
- A nossa...- disse a menina quase sem falar.
- A nossa...-recitou o poeta abalado. Por que é tão infeliz?
- Porque nos amamos, mas nem eu sou poetisa, nem você menino.
- Onde está a luz dos seus olhos, menina?
- Virou fagulha - respondeu.
- Não me chama mais de poeta?
- Não.
- E por quê? - disse docemente.
Foi então que ela se lembrou do caminho das borboletas, das flores, da beleza. Ficou sobremaneira abalada.
- Porque a poesia morreu em mim. Não acredito mais no amor.
- Quem matou?
- Eu mesma. Quem matou a poesia, você diz? Eu mesma matei. Amargura mata tudo.
- Até o amor?
- Acho que sim - respondeu a garota.

A menina e o poeta ficaram por longos dias sem saber como terminar essa história. Cansada de esperar, a menina resolveu inventar o final.
Nunca se soube o desfecho que o poeta estaria inventando.
É tão duro viver, dia após dia respirar sem saber o futuro.

Vivamos a invenção como fim.

Diz o poeta:
- Menina.
- Fala.
- Vê se esse coração é seu, achei num rio.
- É meu sim, obrigada.
A menina pegou seu coração, trêmula de saudades dos sentimentos e todos os assuntos coronários.
- Menina.
- Fala.
- Tem medo?
- Sim.
- O que tememos?
- Muito pouco.
- Concordo - silenciou o poeta.
- Poeta, você me disse que não tinha medo.
- E você me disse que era bondosa.
- É possível que não fiquemos juntos.
O poeta refletiu.
- Sim, é possível.
- O amor não basta?
- Não - disse o poeta abatido.
- A vida é feia!
- Não seja tola, menina. A vida é linda demais - disse sabiamente.

A menina se pôs a olhar o céu e o poeta fez o mesmo. Ele apontou uma lagarta peluda e ela delirou.
A menina se levantou e se lançou no rio, o poeta ensinou a fazer apito de folha.
- Que gosto terá essa fruta? - perguntava o poeta.
- Como se planta cenoura? - perguntava a menina.

Eles parecem parecidos e amam engraçado. Cada qual com seu jeito, cada qual com seu belo.

- Eu sou poeta?
- Sim - disse a menina sorrindo. Eu sou menina?
- Não - disse zombeteiro.

E assim acaba esse mundo.

Um comentário:

Miguel Del Castillo disse...

por que isso tá com zero comentários?

estou emocionado.
'Vivamos a invenção como fim.'

bonito. decidi que vou voltar aqui (tinha feito só aquela vez que comentei), mas hoje patricia me mandou esse texto pra ler. vou te favoritar pra sempre voltar.