19.7.16

Dois : Liz

Paris é um frio dos infernos e de nada serve o rio Seine. Ela mete a mão nos bolsos de seu casaco verde musgo em busca do isqueiro. O frio faz seus ossos trepidarem. Resoluta, com seu queixo quadrado e lábios finos, puxa o cigarro, pendura na boca ressecada e produz uma chama em frente aos olhos. Como que enfrentando o fogo, como que tragando a essência do mundo.

Liz se afastou do grupo, em parte para não levar fumaça, em parte para não levar o grupo. Naquele exercício solitário de reflexão e vício, Matthieu se aproxima. Naquela altura, não sabíamos seu nome. Eu, como narradora, só poderia relatar que ele usava uma calça justa ao estilo francês, uma jaqueta de couro ao estilo argentino, uma pulseira ao estilo peruano e uma cara bonita ao estilo universal.

-Tu as feu? – ele perguntou, como quem anda de pijamas no Coliseu.

Ela disse que tinha fogo e entregou um isqueiro bic cor de rosa que trouxe do Brasil. Ela fumava como quem sobrevivia de uma catástrofe, traumatizada, com os cotovelos presos nos quadris, com um suspiro de fumaça lento e sofrido. Ela era dos trópicos de Capricórnio. Ele era do norte da França, com ancestral do pé grande glacial, fumava com um cabelo loiro que reluzia. Caía no olho e ele ficava sem ver. Um cabelo cintilante, daqueles que brilham no escuro. Cabelo, cabelo? Mas e os olhos? Mesmo como narradora não dou conta de lembrar a cor dos olhos dele. Eram meigos, meio verdes, tombados no final. Olhos de quem já viu o amor. Olhos de quem já riu. Mas ali, eram olhos para os barcos estéreis do Sena.

As luzes eram alaranjadas, a conversa dos outros virou um bruit e eles foram ficando cada vez mais a sós. Ela sentou num pequeno pilar de ferro, que servia para a ancoragem dos barcos. Ele resolveu que era o momento de colocar os nós dos dedos na cintura. E fizeram companhia um para o outro em novembro. Num dia qualquer que só Deus tem registro.

Inesperadamente, Matthieu pousou as mãos sobre a cabeça de Liz. Ela se encostou nas pernas dele, segurou suas panturrilhas e esticou as próprias pernas. Ele agachou e nos ouvidos de Liz disse: Vem (em francês não traduzível). Ela foi. Foi parar no parquinho alpinista das crianças. Que fica do lado direito do Sena, antes da Ponte Alexandre III, onde há pelo menos duas fontes de água gasosa. O chão parece de asfalto mas é meio molenga.  Ele a sentou num brinquedo indecifrável para os latinos, segurou nos seus joelhos. Ela tinha uma franja recém cortada em Montmartre e veias minúsculas nas bochechas. Ele olhou. E olhou.


E ninguém sabe o que aconteceu depois. 

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